03/09/2021

Mística e Filosofia. Os Caminhos de Teresa D'Ávila e María Zambrano

MÍSTICA E FILOSOFIA

OS CAMINHOS DE TERESA D’ÁVILA E MARÍA ZAMBRANO 

  Este livro trata da experiência mística e da filosofia de duas mulheres espanholas: uma na aurora da modernidade, Teresa d’Ávila, e a outra, no fervor da contemporaneidade, Maria Zambrano. Teresa é uma Doutora da Igreja e Maria Zambrano foi a primeira mulher a ganhar o prestigiado prêmio Cervantes.

            Apresentamos alguns momentos da experiência mística de Teresa d’Ávila que nos permitem individualizar, na primeira modernidade, as condições favoráveis ao surgimento de práticas devocionais, meditações e orações que não somente recorrem à imaginação, mas elaboram verdadeiras técnicas contemplativas que compõem a estrutura da vida espiritual, como ocorre com os Exercícios Espirituais de Santo Ignácio de Loyola.

            Sabemos que a teologia moderna desenvolveu um trabalho regulador em relação a este tipo de proposta espiritual, confiando em uma racionalidade modelada a partir do paradigma das ciências naturais. Assim, ao recorrer à imaginação na vida espiritual, parece que se torna algo marginal e estranho á elaboração teológica. Porém, o que percebemos em Teresa, é a possibilidade de desenvolver, a partir da oração em pleno contexto da modernidade nascente, uma experiência mística que supera a própria racionalidade moderna.

            Aproximar-se de Teresa d’Ávila traz consigo a inclusão, para o campo da mística, de realidades e expressões que ultrapassam um simples objeto ou linguagem. O mundo da espiritualidade não é dominado pela racionalidade linguística. Há uma série de linguagens que compõem as experiências míticas e que inserem o fiel em um espaço de liberdade interior inviolável.

            A monja Teresa D’Ávila, reformadora da ordem carmelitana, foi beatificada em 1614 e canonizada em 1622, quarenta anos após sua morte. Certamente eram vivos muitos teólogos que recomendaram que suas obras fossem queimadas. Em vida, ela permaneceu constantemente ameaçada pela Inquisição na época de Carlos V e depois de Felipe II. Ela foi denunciada à Inquisição, pelo menos, umas seis vezes. Nada estranho, uma vez que sustentava opiniões que foram objetos de perseguição e condenação de muitos dos seus contemporâneos. E o fazia por causa da sua personalidade, seu espírito crítico.

            Não poucas vezes, com sua aparência doce e forte, não se vinculava às diretrizes recebidas e se colocava em tensão contra as diversas autoridades instituídas: confessores, bispos, superiores carmelitanos e núncios apostólicos. 

            Era uma viajante incansável e fundadora de mosteiros, em contraste com todas as normas da ContraReforma que desejava que as religiosas permanecessem protegidas rigorosamente pela clausura. Por muito menos, alguém poderia passar longos anos nos cárceres em Toledo ou qualquer outro lugar... É por isso que ela desperta tanto interesse dos estudiosos, uma vez que conseguiu desvincular-se da vigilância escrupulosa e obsessiva da Inquisição.

            É neste contexto que podemos interpretar o nascimento da mística espanhola no século XVI e a figura de Teresa D’Ávila aparece com a expressão visível da grande questão: “Onde está o teu Deus?”. Trata-se de uma questão que a alma se pergunta a si própria; é a expressão da extrema solidão. Como encontrar as palavras e os gestos para expressar a verdade religiosa deste vazio?

            Neste sentido, a mística teresiana se coloca em continuidade com os movimentos espirituais do seu tempo, mas também introduz uma novidade que não poderá ser controlada pelo poder eclesiástico. Esta novidade requer uma nova escuta e uma nova abordagem das dinâmicas do ato de crer. A novidade é o resgate da interioridade estática e das capacidades imaginativas e visionárias que requerem reconhecimento e garantias de validade e veracidade vividas por uma pessoa religiosa.

             Também a filósofa Maria Zambrano possui uma novidade. Trata-se da “marginalidade” do seu pensamento, que rompe os preconceitos de gênero na filosofia, Na sua forma especulativa sua reflexão se constitui e se realiza à margem da filosofia “oficial”.  Sua filosofia alcançou uma forma particular e divergente da tradição racionalista ocidental. Talvez aqui encontremos uma justificativa para que seu nome seja tão desconhecido no circuito acadêmico.

            Discípula de mestres como Ortega y Gasset e Xavier Zubiri, e amiga de Camus, sua filosofia é marcada pelo raciovitalismo Orteguiano, que engloba, simultaneamente, a noção de perspectivismo filosófico, a crítica a uma tradição racionalista e a incorporação ao pensar da noção de vida como realidade radical, que se impõe frente aos conceitos abstratos da filosofia tradicional.  Não podemos separar o homem de suas circunstâncias. A única realidade radical é a vida: a razão deveria, portanto, parar de construir abstrações sobre abstrações, conceitos a respeito de conceitos. Todo conhecimento parte da vida, e até a razão é somente um aspecto da própria vida. É razão vivente. Este é o sentido de dar razão à existência.

Mas para Zambrano a vida não é somente aquela percebida pelos sentidos e conhecida por seus conceitos racionais; exige mais do que uma razão vital para que seja abarcada em sua plenitude: é preciso ser sentida a partir das entranhas. Nesse ponto, vai além do raciovitalismo e pensa em uma razão que não seja somente razão, mas que seja também poesia. Razão e poesia unidas para possibilitar a visão dos mundos de dentro e de fora: a razão poética como expressão da alma, um pedaço do cosmo alojado no ser humano.

Zambrano foi uma pensadora por sobre a qual a vida se impôs como razão do pensar, vivendo intensamente as questões políticas, sociais e culturais do povo espanhol. Pensar para entender, mas também para sobreviver diante do desterro que enfrentou por longos anos, não só no sentido objetivo-pragmático da palavra sobrevivência, mas também no tocante à necessidade de manter a sua identidade apesar da sua situação de cidadã do mundo. Foi essa necessidade que a fez buscar dentro de si o alimento para continuar se reconhecendo diante da imensidão.

A raciopoética Zambraniana pode ser entendida como colocar o ser humano do lado do avesso, deixando todos as fibras nervosas aparentes e todos os sentidos captando plenamente as impressões do mundo externo. Pensar e sentir em um mesmo processo poético.

            É próprio do ser humano abrir caminhos; por isso, essas duas mulheres, cada uma em seu tempo, abriram perspectivas: uma na mística e a outra na filosofia. À margem da espiritualidade ou da filosofia, o que importa é que não existe um único caminho para se alcançar o sentido da vida. Há, no entanto, a maneira como se conduz o passo na caminhada: olhando somente o caminho, olhando também a paisagem, ou ainda se vendo como o caminhante que olha tudo e que ao mesmo tempo é a própria paisagem.

Os autores

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