Ensino não-formal de filosofias

Renata Lima Aspis

Prof. (UFMG) e GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

18/10/2021 • Coluna ANPOF

O que foi feito daquela filosofia que se dava na rua? O que foi feito da filosofia que é um trabalho sobre si mesmo e só tem sentido se é ação, aquela que é produzida na relação com os outros?  Sabemos que na tradição grega antiga as filosofias eram praticadas, não havia cisão (e muito menos contradição) entre o que se falava e o que se fazia. As buscas da verdade não eram discursos conceituais descolados das práticas da vida. A filosofia era feita com o corpo, com o corpo e com a alma, sem descompasso. A conjunção entre o falar/pensar e o fazer/ação no mundo se constituíam como duas dimensões de uma mesma coisa, indissociáveis e sem contradição. O que foi feito com aquele pensamento que só era posto em movimento quando o corpo também se movimentava?

Hoje, a filosofia está sentada, sentada à mesa, diante de um papel ou tela, a serem preenchidos com ideias, palavras que poderão se lidas por outros corpos também sentados. Sentada à mesa em um escritório, em um gabinete, isolada. Poderá haver uma conexão entre os cérebros que compartilham essas ideias na escrita e na leitura, mas nada se passará nos corpos, nada se modificará no mundo, os corpos continuam obedecendo à ordem da produção e consumo das indústrias: produção de artefatos, produção de cultura, produção de informações, modelagem e modulação dos corpos vazios de ações e abarrotados demais de dados e comandos. A produção de conhecimento filosófico passou por muitos processos, que a transformaram em discurso separado do mundo. Arriscamos dizer que, a partir da Modernidade, quanto mais os corpos foram sendo confinados e disciplinados, mais extenso foi ficando o vão entre o que se faz e o que se fala. Não há tempo para se fazer nada além de trabalhar (ou procurar trabalho), os sonhos e os outros mundos possíveis se dão apenas nos discursos vazios de sentido, regurgitados do consumo de cultura em forma de mercadoria. Para Nietzsche a cultura moderna não é viva, não é uma cultura efetiva, “[...] mas apenas uma espécie de saber em torno da cultura; fica no pensamento-de-cultura, no sentimento-de-cultura, dela não resulta nenhuma decisão-de-cultura” (NIETZSCHE, 1978, p.62). Hoje, movimentos de transformação de si e do mundo são os dos pixels, dos fluxos eletrônicos que entram pelos olhos e ouvidos de um corpo inerte sentado em uma cadeira, mexendo um dedo no mouse, ou na telinha sensível ao toque.  Sensações atravessam esse corpão parado e nele se encerram.

Em uma perspectiva individual é possível para alguns tomar alguma decisão em relação a diminuir o abismo entre o que fala/pensa e o que faz/age no mundo. A adoção de determinadas dietas (não apenas alimentares), a atenção a determinados comportamentos, o esforço em não ser um vetor de reprodução de valores alheios, etc., ou seja, a busca de novos e autênticos modos de agir consigo mesmo e com os outros, na composição do mundo, que seja coerente com seus desejos, com suas ideias e com a posição política que deseja ocupar. Esse seria um corpo cheio de contradições e desvios, na busca constante de re-existir a cada captura dos sistemas de modo único de vida que se impõem. 

Para além disso, em uma perspectiva do ensino de filosofia, como poderíamos pensar (im)possibilidades de fazer filosofia de outras maneiras, que não sejam a dos discursos sentados isolados da vida? É possível encontrar modos de mexer o corpo, que levem o pensamento a colocar-se também em movimento? É possível mexer o corpo de modo tal a enxamear signos que disparem o pensamento? Fazer filosofia com o corpo. Criar uma nova disciplina no pensamento que aconteça e se constitua no corpo? Estamos trabalhando aqui em acordo com a ideia de Gilles Deleuze de que pensamento é criação. O blablablá constante que se passa nas cabeças, as opiniões, os sensos comuns, jargões, memes, notícias, não são pensamento. O pensamento não é natural, “o homem é um animal racional”, não, o pensamento, para ser colocado a funcionar, precisa de um chacoalhão, precisa se encontrar com um signo que o instigue à decifração, que o perturbe, e o coloque em movimento de busca, de criação. O pensamento, para funcionar, não depende dele mesmo, de uma certa boa vontade do sujeito pensante, ele depende de algo alheio a si, de uma violência - para usar uma palavra que Deleuze usa – que o tire da inércia e o faça elaborar problemas ao invés de procurar por essências. Quando se concebe o pensamento como natural, se está associando-o diretamente à criação de conhecimento e aliando-o à verdade, bastando se inventar um bom método para chegar a ela.  No entanto, seguindo Deleuze, se pensar é ter de lidar com o imprevisível e o imponderável, esse será necessariamente criação, sem um método universal que o possa salvar de ter de se movimentar em busca constante de modos de operar, sem garantias, sem pressupostos e fundamentos. A filosofia, a arte e a ciência são modos de pensamento. 

Se assumirmos que pensamento é necessariamente criação, nos perguntamos: o que é o aprender? O que é o aprender senão ele também o encontro com signos que interessem e façam sentido? E qual a relação entre aprender e o ensinar? Nenhuma. Não necessariamente. Podemos planejar bem e de muitas formas o que vamos ensinar, mas não temos quaisquer garantias da correspondência disso com o aprender. Não sabemos como, o que e quanto vai aprender aquele a quem dirigimos o ensino. O ensino teria de ser um enxameamento de signos, um aspergir que se quer virótico, um vetor de problemas, sementes ao vento, movimento, com Nietzsche, de lançar flechas que, tomara, acertem alguém. Essa ideia de ensino é a ideia de um ensino sem forma, não-formal, que abandona a correspondência de si mesmo com o aprender, é um arriscar, é uma aposta.

As ideias que estou desenvolvendo aqui têm conexão com a pesquisa “Fazer filosofia com o corpo na rua: experimentações em resistência”, que realizei entre os anos de 2018 e 2019, junto com o grupelho, Grupo de Estudos e Ações em Filosofia e Educação, da Faculdade de Educação da UFMG, nas ruas de Belo Horizonte. 

Nos aventuramos a buscar formas de fazer filosofia com o corpo na rua, diante da cidade. Uma filosofia com outrem, perante ele, que pretende afetá-lo. Lançamo-nos no desafio enorme de inventar gestos filosóficos que pudessem despertar interesse, que pudessem fazer se mover o pensamento dos transeuntes apressados. Fomos às ruas, praças, hall de faculdade, porta de restaurante do campus da universidade com nossas ações de filosofia com o corpo na tentativa de atiçar fagulhas de pensar, signos que instigassem a decifração, queríamos dar o que pensar. Tratou-se da necessidade de criar modos de resgatar uma relação intensa entre filosofia e vida. Qual o sentido de uma filosofia que não é vivida? Tratou-se da busca de uma filosofia tornada gesto, de uma filosofia incorporada. O que aprenderam as pessoas com quem nos encontramos na rua, na prática de nossos gestos filosóficos? Jamais saberemos. Isso é imponderável. 

Referências

DELEUZE Gilles. Proust e os signos. Tradução Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

_____. Diferença e repetição. Tradução Roberto Machado e Luis B. Orlandi. São Paulo: Graal, 2006.

NIESTZSCHE Friedrich. Considerações extemporâneas II – Da utilidade e desvantagem da história para a vida. In: _____. Obras Incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Coleção Os Pensadores.