A ATUALIDADE DA FILOSOFIA DE HANS JONAS NO BRASIL DIANTE DA DEPREDAÇÃO DO PATRIMÔNIO NATURAL POR PARTE DO ATUAL GOVERNO

Jelson Oliveira

Professor do Programa de Pos-Graduação em Filosofia da PUCPR

24/11/2016 • Coluna ANPOF

As maravilhas naturais de fauna e flora do Brasil são cantadas em verso e prosa ao redor do mundo e vêm despertando interesses de todo tipo ao longo da história. A grande e variada extensão de nossas terras inclui seis biomas terrestres e um marítimo, diversos climas, um imenso potencial hídrico, uma riqueza mineral inigualável, a maior parte da maior floresta tropical do mundo, o maior rio do mundo, a maior área alagada contínua, parte do maior reservatório de água subterrânea, a maior rede de espécies de mamíferos, peixes e anfíbios do planeta, o segundo maior número de aves catalogadas e o terceiro de répteis, etc. etc. Tanta riqueza, obviamente, vem despertando, ao longo da nossa história, inúmeros conflitos de interesses, principalmente quando se trata da expansão dos sistemas econômicos.

Desse modo, poucos países do mundo vivem de forma tão profunda a contradição natureza e sociedade como o Brasil. A herança colonial, marcada pela extração da matéria prima e pela escravidão, persiste como modus operandi da forma como o Brasil pensa a si mesmo e se atualiza na presente tensão entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico, este último sempre de novo baseado na exploração irresponsável dos recursos naturais. É bem verdade que os discursos “verdes” cresceram nos últimos anos, mas não foram suficientes para evitar que a sustentabilidade fosse apenas um conceito vazio, sequestrado pelas propagandas de sabonete e usufruído como verniz de marketing.

 

Se a política dos governos populares dos últimos treze anos não alterou significativamente esse cenário, dando preferência à “aceleração do crescimento” e aos grandes projetos, a postura do atual governo, empossado ilegitimamente em 2016, agravou em muito a situação. São exemplo desse agravamento as falas recentes do ministro Blairo Maggi, considerado o maior produtor individual de soja do mundo em terras da chamada Amazônia Legal e atual Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento do Brasil. Durante a Conferência Mundial do Clima (COP 22), realizada em Marrakesh, no Marrocos, entre os dias 15 a 18 de novembro, o ministro comparou, em péssimo português, a reserva legal de 80% da Amazônia a “um hotel de 100 quartos que só se pode ocupar 20”, acrescentando que as metas assumidas pelo Brasil em relação às emissões dos gases de efeito estufa não passariam de mera “intenção”. Além disso, como representante do agronegócio, amplamente responsável pela violência contra os povos indígenas e demais populações tradicionais, pelo trabalho escravo, pelo aumento do desmatamento e pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, o ministro declarou ironicamente que “a agricultura brasileira é a mais sustentável do mundo”, sugerindo que a legislação atual de preservação de rios e nascentes precisa ser revista em benefício dos atuais produtores. Como se não bastasse, ele ironizou os dados da Global Witness, com sede em Londres e Washington, que mostram que um terço das 150 lideranças ambientalistas assassinadas em 2015 no mundo é formado por brasileiros: “Fico feliz em saber que de ontem para hoje morreram menos 150 ambientalistas, porque ontem ouvi que eram 200 por ano e agora diz aqui que foram 50”2, afirmou o Ministro de Temer.

O Brasil vive, assim, no campo ambiental, a depender do governo atual, o risco do eminente de desmantelamento da legislação ambiental, de aumento da violência no campo e de aceleração da degradação do meio-ambiente. Dados de satélites coletados e publicados pelo IMAZON (Instituto do homem e do meio ambiente da Amazônia), dão conta que 972 quilômetros quadrados da floresta amazônica foram desmatados até junho de 2016, um aumento de 97% em relação ao mesmo período de 20153. Além disso, dados da Comissão Pastoral da Terra, mostram que só na Amazônia ocorreram 39 assassinatos até outubro de 2016, com número crescente de tentativas de assassinato (142% a mais em relação ao mesmo período de 2015), ameaças de morte e prisões (aumento de 61% e 85%, respectivamente)4. A impunidade que persiste no caso do crime da Vale/Samarco em Mariana, o projeto de Lei 654 que elimina a obrigatoriedade de audiências públicas com impactados por grandes empreendimentos e impõe prazos inexequíveis aos órgãos de licenciamento, são exemplos notórios de que a ironia do Ministro não é só brincadeira de mau gosto.

Também agora, quando cabe à Filosofia refletir e agir a favor das garantias democráticas, da defesa dos direitos humanos e dos valores éticos colocados sob ameaça como poucas vezes em nossa história, é preciso não fechar os olhos para essa situação. A Filosofia não pode se calar diante da depredação dos recursos naturais, do empobrecimento geral da vida, da perda da biodiversidade promovida pelo “saque, a depauperação de espécies e a contaminação do planeta”, do “esgotamento das reservas naturais”, gerando “uma mudança insana no clima mundial causada pelo homem”, que vem “se desenvolvendo a toda velocidade”, ainda mais porque está somada a uma “dieta socioeconômica” baseada em hábitos de consumo insustentáveis (JONAS, 2013, p. 49). Poucas vezes na história os desafios teóricos e práticos dessa problemática foram mais evidentes. Sua urgência torna-se parte da crítica ao atual modelo econômico que vem sendo implantado à revelia pelo atual governo, patrocinado por alguns dos ideais mais danosos do ponto de vista ambiental, como aqueles representados muito claramente pelo Ministro Maggi.

Autor de uma das obras mais importantes do cenário ético atual, O princípio responsabilidade5 (1979), Hans Jonas foi um dos filósofos contemporâneos que mais levou a sério o problema ambiental, seja porque identificou um princípio dualista de negação do mundo como marca cultural do Ocidente (que teria começado nos movimentos gnósticos da Antiguidade e alcançado a filosofia existencialista), seja porque criticou as bases científicas da biologia moderna em sua interpretação do fenômeno da vida ou porque apontou as insuficiências das éticas tradicionais para dar conta dos desafios trazidos pelo avanço desenfreado da técnica, travestida em uma “vontade de ilimitado poder”6 (JONAS, 2013, p. 34), que contrapõe homem e natureza, com prejuízo de ambos. Jonas é um dos grandes críticos das utopias do progresso desenfreado e do desenvolvimento a todo custo porque vislumbrou a vulnerabilidade da natureza, a irreversibilidade e o caráter cumulativo dos danos a ela impetrados, o avanço dos novos poderes e, ao mesmo tempo, o despreparo ético do homem para o seu uso. Como todo poder é um modo de ação e de intervenção, ele não pode ser pensado sem que se leve em conta as responsabilidades tanto individuais quanto políticas dos homens atuais sobre as gerações futuras. A filosofia de Jonas, por isso, formula conceitos tão polêmicos quanto urgentes, que incluem a ideia de uma “heurística do temor” e de uma “futurologia comparativa” (JONAS, 2006, p. 70), capaz de reunir saberes os mais variados a fim de prever o mal futuro, baseada em uma “ciência factual dos efeitos distantes da ação técnica”. Se as utopias do progresso estão baseadas na formulação de um cenário positivo que anula a necessidade da própria ética, as informações que chegam das ciências naturais e dos especialistas da ecologia dão conta de que a nova ética precisa dos saberes previdentes, a fim de antever os perigos futuros – in dubio pro malo é o mote central da ética jonasiana, que não prega a tecnofobia, mas a parcimônia, a modéstia e a precaução como valores centrais de nosso tempo, em vista do bem humano e de toda a rede da vida. No fim, Jonas propõe que a “filosofia da moral tem de consultar o nosso medo antes do nosso desejo” (JONAS, 2006, p. 71) e que, afinal, a ética precisa ser um “poder sobre o poder” (2013, p. 75) capaz de impor freios voluntários ao afã destrutivo patrocinado pela tecnologia que chegou ao campo brasileiro, patrocinado pelas corporações multinacionais a partir do final da década de 1980.

A sociedade da produção em alta escala, cujos danos são sentidos já por nossas gerações com uma aceleração sequer imaginada pelos diagnósticos mais pessimistas em relação, por exemplo, ao aquecimento global, obviamente tem dificuldade de aceitar uma argumentação que proponha moderação ao fazer e que soa conservadora demais diante dos benefícios e dos êxitos incontáveis trazidos pela atividade exploratória que remonta ao programa baconiano, amplamente criticado por Jonas. Fomos ensinados a pensar que, se podemos, então devemos. A maioria parece estar interessada no favorecimento da gula, curiosamente tornada virtude central do atual modelo de sociedade, estimulada pela indulgência geral e pela esperança material do consumo, lançada como apelo em favor de uma vida (mais) feliz. Ninguém parece disposto a dominar esse forte impulso e, por isso, muitos apoiam medidas irresponsáveis de usurpação do patrimônio natural como aquelas difundidas pelo ministro.

Embora não tenha conseguido formular a facticidade política de sua proposta ética, Hans Jonas esteve atento ao fato de que um tal desafio só pode ser enfrentado por um modelo político capaz de impor, no pior dos cenários, uma mudança de costumes “mediante a lei pública e suas sanções” (2013, p. 79), algo que ele sabe, tem poucas chances de acontecer “no procedimento de votação democrática que está amplamente dominado por interesses e circunstâncias atuais”. O atual estágio da democracia brasileira é a prova mais cabal de que Jonas, também nesse campo, tinha razão: sequestrados pelos interesses do capital ecologicamente nocivo, Temer e seus ministros implementam no Brasil a imoderação como regra e seguem à risca a receita que faz a natureza pagar o preço do desenvolvimento – embora essa última palavra careça de sentido na crise atual o que, longe de ser um benefício, acaba por ser um agravante contra o meio-ambiente, como comprovam os dados supracitados. Contra eles, Jonas se dirige àqueles que têm alcance dessa problemática e eu pensamento contribui para uma análise filosófica dos desafios trazidos por essa conjuntura no âmbito da nossa responsabilidade pelo futuro global da vida sobre o planeta. Sua ética tem uma preocupação emergencial que recoloca, a seu modo próprio, o problema do ser no centro do pensamento filosófico: diante dos poderes ameaçadores da técnica e diante das evidências cotidianas, devemos nos perguntar de novo por que o ser (a vida) e não antes o nada? Ou seja: por que ainda queremos a manutenção do ser vivo no futuro? Se temos o poder de destruí-lo – e a nós mesmos – por que não o fazemos? O problema ambiental, assim, além de ser um problema ético, torna-se uma espécie de exercício heurístico que recoloca a Filosofia diante de seus temas mais célebres: o que é o ser, o que é o homem, o que devemos fazer, o que podemos esperar?

Pesquisadores do campo da ontologia e da ética, estudantes e professores preocupados com essa questão, vêm se reunindo no GT Hans Jonas da ANPOF, em um esforço que articula pelo menos sete programas de pós-graduação, de diferentes regiões do Brasil e se articula com um Grupo Internacional de Pesquisa Hans Jonas, que conta com membros de países como Alemanha, Itália, Bélgica, França, Chile, África do Sul e Inglaterra. A ideia é debater, traduzir e interpretar a obra de Jonas à luz dos grandes problemas filosóficos que ela evoca, confrontando-a com seus interlocutores, assumindo suas faltas e virtudes (afinal, próprias de toda “boa” filosofia) para, então, também fazê-la relevante ao nosso tempo, aos desafios que são nossos, no Brasil de hoje, onde, mais do que nunca, a formulação do imperativo da responsabilidade parece indispensável: “aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p. 47). Ouviu senhor Ministro?

1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR; atual coordenador do GT Hans Jonas da ANPOF.

2 Disponível em: https://goo.gl/b4dp1f. Acesso em: 21 nov. 2016.

3 Disponível em: https://goo.gl/69k8Nd. Acesso em 21 nov. 2016.

4 Disponível em: https://goo.gl/LKaq4F. Acesso em 21 nov. 2016.

5 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUCRio, 2006. De agora em diante PR.

6 JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética. Sobre a prática do Princípio Responsabilidade. Tradução GT Hans Jonas da ANPOF. São Paulo: Paulus, 2013. (Col. Ethos)

24 de Novembro de 2016.

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