A comiseração humana em tempos extremos: as enchentes no RS, um chamado à solidariedade

Breno Dalla Zen

Mestre em Filosofia pela UCS

06/05/2024 • Coluna ANPOF

Trazemos aqui uma breve reflexão sobre o papel da solidariedade e do sentimento de comiseração no que se refere à grande inundação sofrida pelo Estado do Rio Grande do Sul, e o inenarrável sofrimento de quem veio a perder tudo; milhares de pessoas obrigadas a deixar suas casas e rumarem para abrigos coletivos, sabendo que perderam suas conquistas materiais, sua privacidade, seu conforto e o mínimo de segurança financeira, em um mundo que esteve estabelecendo, pelos menos nos últimos 500 anos, idade que tem o Brasil, a noção de que as conquistas materiais são parte essencial da identidade de cada indivíduo, e talvez sua essência, em um mundo onde se supervaloriza o bem material; perder tudo que se tem, em dias como os nossos, poderia implicar também uma perda de identidade?

E como fica o perímetro urbano, nossas relações sociais, do cotidiano do bairro que foi arrastado pelas chuvas, da cidade que talvez nunca será a mesma, do mercadinho que chafurdou na lama junto a uma pilha de lixo, de restos de móveis, de animais, de pedaços mortais de tudo aquilo que simbolizava a ação humana? Como é levantar em mais uma segunda-feira e não ter compromisso algum, pois todo e qualquer compromisso fora levado pela correnteza de um rio furioso, que engoliu vidas, e que carregou as coisas, e que naufragou com as relações cotidianas entre a vida e essas coisas? Como é acordar e ter de aceitar que tudo que nos circundava foi realmente levado pela crise climática, pelo excesso provocado pela ação humana, pela crença que nos fez jurar que coisas tão extremas jamais aconteceriam conosco?

Parece fácil realizar reflexões como estas de onde estou, seco, sem perdas materiais, e com poucos danos psicológicos. É incomparável se levarmos em conta quem está passando tudo isso de perto. Entretanto, comparar-nos com as outras pessoas é algo bastante comum, e isso abrange níveis bastante distintos. Faz parte de nossa humanidade que nos coloquemos no lugar dos outros, nossos semelhantes. E este evento tão extremo e melancólico também foi capaz de despertar sentimentos que, por muitas vezes, o sistema neoliberal nos obriga a manter adormecidos, dentro de nós.

Um destes sentimentos é a comiseração, também conhecida por piedade ou compaixão, que no Século XVIII foi objeto de reflexão do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau. Segundo o autor, se trata de um sentimento natural, de caráter instintivo e até mesmo anterior à razão, e que representa uma fuga primária de nossa individualidade para o reconhecimento imediato do outro, nosso semelhante, o qual não desejamos ver sofrer. Segundo o que Rousseau descreveu em seu Discurso sobre a origem da desigualdade, o sofrimento do outro nos é repugnante, e nos desperta um sentimento de humanidade, que nos aproxima e nos iguala, nos faz querer ajudar e confortar. É a partir disso que a comiseração nos convida para a formação de relações cooperativas, capazes de inspirar trocas igualitárias e o bem-estar social.

É esperançoso encarar que este sentimento permaneça fluente dentro de nós, seres que se obrigaram a viver em um mundo que se tornou cada vez mais competitivo e injusto, onde aprendemos a olhar para a alteridade como se o outro fosse alguém a quem sempre devemos nos comparar, e que devemos nos sair melhor, como uma eterna competição, da qual jamais sairemos totalmente satisfeitos. A este sentimento de viés competitivo, de cunho relativo, e que nos faz criar inevitáveis comparações com nossos semelhantes, instaurando a vaidade e a competitividade no perímetro social, Rousseau chama de amor-próprio, termo que em ordinariamente ganhou um sentido distinto, mas que para o autor seria este o responsável por todas as mazelas das sociedades humanas, desiguais e adversas.

A fatalidade do momento que vivemos no RS parece nos chamar para a direção contrária, para relações mais instintivas. Retomamos o sentimento natural da comiseração, e voltamos olhar para a alteridade a partir de noções que nos inspiram ações cooperativas; não queremos ver nossos semelhantes sofrendo; nos voluntariamos, nos tornamos recursos humanos para um estado de bem-estar social. Não podemos admitir que tão grande mal se acometa sobre tantos outros sem que façamos um movimento mínimo para que algum bem possa confortá-los, neste momento tão difícil.

Deste sentimento tão humano e natural surge a solidariedade, que temos visto ressurgir como uma força que vem a combater todo este mal. Mutirões intermináveis se espalham por ginásios, escolas e salões paroquiais do Estado, espaços onde pessoas que perderam tudo se acumulam para um lar temporário, longe do mal que as acomete, mas também sem um lar para retornar. Apesar de estar em pedaços, o povo gaúcho está podendo contar com incontáveis ações de solidariedade e compaixão. Doações de cestas básicas, roupas, colchões, cobertores, eletrodomésticos e valores monetários tem atingido valores consideráveis. De todo o Brasil e também de outros países, cidadãos comuns estão se permitindo o mais básico dos sentimentos, a comiseração, para somar nesta rede solidária, seja a partir do trabalho voluntário ou por meio de doações. Esta força se soma à força do Estado, que no momento também se provou necessária, e seu papel no cuidado com o cidadão também se evidencia.

Este nosso retorno à simplicidade de sentimentos também mostra que ainda temos algo de natural em nós, que não pôde ser engolido pelo sistema neoliberal, este, que nos quer egoístas e competitivos para sua retroalimentação diária. Isso prova que nós podemos sim, lutar por uma sociedade mais justa e igualitária, e por um estado de bem comum.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ROUSSEAU, J.J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. In: Escritos sobre a política e as artes. São Paulo: Ubu Editora / Editora UNB, 2020.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.