A educação como recusa do servir: uma crítica à militarização das escolas

19/11/2020 • Coluna ANPOF

Willian Bento Barbosa. (Professor da SEED/PR - Doutorando em Filosofia pela UNIFES)

Desde que o governo de Bolsonaro assumiu a presidência, junto ao elogio da ditadura, da censura e da tortura, do negacionismo científico e revisionismos da história, junto aos ataques às universidades, ele acenou à imposição do modelo militar para as escolas públicas como grande proposta para a educação: “combater a ideologia de gênero e as amarras ideológicas”. A portaria e o decreto que instituem o programa das escolas cívico-militares foram publicados no final de 2019 e o Estado do Paraná foi um dos primeiros a aderir. Neste ano, em meio à pandemia, o governador Ratinho Jr., reconhecido apoiador de Bolsonaro, junto ao secretário de Educação, Renato Feder, anunciou o lançamento do programa em 26/10, com consulta pública, instituída para 27 e 28 de outubro, dois dias após o lançamento e sem qualquer discussão com a comunidade escolar. O programa foi aprovado e prevê a implementação no Paraná, já para o ano letivo de 2021, de mais de 200 colégios cívico- militares, mais do que a meta do Governo Federal estipulada até 2023.

Os discursos que endossam tal “pedagogia” da militarização já são conhecidos: o resgate de valores cívicos e patrióticos, a imposição da ordem e da disciplina militar à rotina do estudante e a estética militar nas vestimentas, no corte de cabelo e no uniforme. O principal argumento favorável a esse modelo, inclusive endossado por professores que apoiam tal projeto, está no resgate do respeito e da disciplina do aluno frente à figura do professor. Esse tipo de discurso parte do princípio de que perdemos a autoridade na sala de aula. Esse diagnóstico não é errado, pois nos deparamos com essa realidade, mas confunde as causas e apresenta uma solução simplista e falaciosa, ignorando a complexidade do tema. Além disso, retira a autoridade do professor, atribuindo-lhe o desastre da educação como sua responsabilidade. Resgata-se a autoridade do professor valorizando o seu trabalho, não desautorizando-o. Essa intromissão é arrogante e extremamente desrespeitosa, pois transfere aos militares, sem nenhuma formação na área, a não ser o discurso ideológico que os sustenta, a responsabilidade administrativa e pedagógica das escolas.

O Brasil acompanha, nos últimos anos, uma ostensiva contra os profissionais da educação. O professor, que ao menos gozava de apreço moral diante da opinião pública, hoje se tornou vilão, inimigo da pátria, vagabundo, doutrinador. O patrono da educação no Brasil, Paulo Freire, terceiro teórico mais citado no mundo, aqui virou bandido, pilantra, energúmeno. Endossam, para educação, outro patrono brasileiro: o do exército, aquele “pacificador” genocida, Duque de Caxias. O presidente já orientou os alunos a filmar e denunciar professores, prática que configura assédio moral e censura à liberdade e à pluralidade da educação. Em meio à pandemia, também disse que os professores não querem voltar para a sala de aula porque preferem ficar em casa. A situação no Paraná não é muito diferente. O governo do Ratinho diminuiu as horas-atividades e congelou licenças e progressões na carreira. Além disso, quem articulou esse processo de militarização nas escolas foram os deputados que faziam parte da “bancada do camburão” em 2015, que aprovaram o confisco da previdência dos servidores, enquanto estes eram massacrados com tiros de bala de borracha e bombas de gás pela polícia.

A proposta se baseia na falácia dos índices de aprendizagem e considera que os colégios militares atingiram as melhores notas nas avaliações, como o Ideb e o Enem. Entretanto, o mesmo comparativo que analisa o desempenho dos colégios militares frente aos colégios civis, públicos, excluí do diagnóstico outros colégios que tiveram rendimento superior aos militares, que são os colégios de aplicação das universidades e institutos federais. Estes apresentam índices superiores e não são militarizados. Portanto, é uma falsa causa que os colégios militares tenham desempenhos melhores porque são militares. Muitos dos colégios com as melhores notas fazem uma seleção prévia dos melhores alunos, além de existir uma diferença de perfil socioeconômico entre as famílias, quanto mais alto o perfil, melhores os resultados. Há em comum nesses colégios o maior investimento. Tanto os IFs quanto os colégios militares têm maior investimento por aluno, assim como maior valorização dos professores, melhores salários e estímulo da qualificação dos professores.

Além da melhoria das notas nos indicadores, outro grande objetivo da militarização, segundo o governo, é promover o ensino de ética e cidadania. O curioso é que por conta dessa proposta, as aulas de filosofia serão reduzidas pela metade. Justamente a disciplina que contém como componentes curriculares os temas da ética e da cidadania. A filosofia, que foi banida das escolas durante a ditadura militar, só voltou a ser componente obrigatório em 2008. Desde então, a procura pelo curso e os programas de mestrado e doutorado aumentaram consideravelmente. Havia muita expectativa com a carreira docente e com o crescimento na área da filosofia. Como foi na ditadura militar brasileira e como é em regimes autoritários, a filosofia e os seus professores são denunciados e caluniados. De fato, a filosofia é perigosa, mas não porque doutrina à serviço de uma ideologia, como seus detratores a acusam, mas porque está a serviço do pensamento, da autonomia e da liberdade. Recusa a menoridade, denuncia a mediocridade, revolta-se contra a baixeza do pensamento, é inimiga do preconceito, contraria a tolice e veda a ignorância. A militarização das escolas, o enclausuramento do pensamento e da liberdade formam sujeitos submissos. Mas talvez o jovem, junto à filosofia, seja insubmisso por natureza e por esse motivo a formação deve ser voltada para liberdade e para autonomia. Liberdade de pensamento, liberdade de crítica, de criação e de resistência. A filosofia desenvolve a atitude crítica, crítica como arte da inservidão, como uma recusa do servir. Precisamos de uma educação que instigue o pensamento e não a obediência.

No Brasil, não faltam referências que comprovem o desastre do modelo implantado pela ditadura militar. A crise atual e o atraso da educação não se devem pelo distanciamento do modelo posto na ditadura, mas pela sua herança e legado do período autoritário que ainda nos impacta, desse o passado que ainda assombra. Ao contrário do propagado nas redes sociais, a atual crise não é excesso de Paulo Freire, mas ausência, pelo exílio de Paulo Freire de nossa história. Também temos inúmeras outras discussões que atestam a obsolescência desse modelo. O experimento de Milgram comprova os perigos da obediência e da recusa do pensar quando as pessoas abdicam de assumir a responsabilidade pelos seus atos. Foi assim nas observações de Arendt, mostrando que os horrores perpetrados pelo nazismo não eram fruto de um mal diabólico, mas da incapacidade humana de refletir, fruto da obediência cega, cadavérica. Na esteira da sociedade de massas, Adorno também explicita a exigência de uma educação dirigida a uma autorreflexão crítica, voltada para emancipação, a fim de evitar que Auschwitz se repita.

A reconquista da autoridade do professor não está na reintrodução do autoritarismo e da disciplina militar como solução. Decorar o hino nacional, hastear a bandeira, manter o corte de cabelo e uniforme, uniformes – não funcionam. Lembro da experiência de um ex-diretor de escola pública, ex-sargento, defensor da militarização. Quando diretor, levou para administração da escola pública, de periferia e de vulnerabilidade, a organização militar. Ele se orgulhava que os alunos abaixavam a cabeça para os professores, que lá dentro ninguém usava boné nem batom. Mas lá fora do colégio, jovens sem boné, nem batom, nem futuro, nem expectativa eram pais e mães adolescentes, usuários de drogas e traficantes e, muitas vezes, mortos ou assassinos. Mas a escola se orgulhava do tamanho dos seus muros em conter a violência de fora sem dialogar com o ímpeto de dentro dos jovens.

Como professor, eu não quero do meu aluno continência, quero criatividade, crítica, mas também gentileza, respeito e humildade – eu exijo humanidade. Eu não quero que meu aluno abaixe a cabeça para ninguém, mas que olhe nos olhos de qualquer um. Quero que ele respeite e seja respeitado, não por medo dos castigos, mas porque pessoas devem ser respeitadas, em sua dignidade. A militarização das escolas pode até servir para que alunos obedeçam aos professores, disciplinem seus comportamentos, deixem uma sala em silêncio para que o professor possa falar. Que o professor seja ouvido, embora seja necessário, em hipótese alguma é suficiente. Não gera conhecimento algum. O aprendizado é uma relação mútua de respeito. Ao contrário do que afirma o ministro da educação, Milton Ribeiro, a vara não educa e é um absurdo ter que argumentar contra em 2020.

A solução para crise da educação não deve ser a militarização que se apresenta como milagre, mas uma solução pedagógica, com vistas à educação com potencial transformador da realidade. Valorização e qualificação profissional, melhoria do espaço escolar, cuidado e afeto, assistência social e psicológica, valorização do conhecimento e da produção científica, democratização do acesso à cultura e ao esporte. Mas um país em que seus governantes atacam as escolas e as universidades, perseguem os professores, silenciam a filosofia, negam a história e a ciência, militarizam as escolas, tem muito passado pela frente, como diria Millôr Fernandes.