A ética da política

Marilena Chaui

11/10/2016 • Coluna ANPOF

No final da ditadura, quando o MDB poderia superar a ARENA com maioria parlamentar, o General Golbery do Couto e Silva resolveu o problema conseguindo novos parlamentares arenistas (senadores e deputados federais), pela nomeação de senadores (conhecidos popularmente como “senadores biônicos”), pela transformação dos territórios em estados e pela criação de novos estados com o desmembramento de alguns existentes. Além disso, como instrumento para enfraquecer o MDB, o novo sistema quebrou o bi-partidarismo e incentivou a proliferação de partidos artificiais ou de aluguel. Um novo sistema partidário e eleitoral foi estabelecido, levando à distorção da representação no nível federal com a sub-representação dos estados demograficamente mais populosos e a super-representação dos estados recém-criados e daqueles de baixa densidade demográfica.

Quais as conseqüências dessa institucionalidade? Dentre várias, uma delas tem sido, nos três níveis de governo (municipal, estadual e federal), a impossibilidade do partido vitorioso para o poder executivo conseguir eleger uma maioria parlamentar, ficando às voltas com o chamado “problema da governabilidade”. Este acaba levando ou a alianças partidárias artificiais (que desagradam a todos os representados) ou, quando tal não ocorre, à distorção de uma prática própria da democracia parlamentar, isto é, a negociação entre executivo e legislativo, ( “concedo x desde que você conceda y”), passando-se da negociação ao negócio, isto é, à corrupção por meio da compra e venda de votos parlamentares. Por sua vez, o financiamento privado das campanhas eleitorais acarreta pelo menos três graves improbidades públicas: a) a desinformação social, pois candidatos e partidos publicam gastos que não correspondem à realidade; b) o segredo, pois candidatos e partidos, à margem de seus programas e compromissos públicos, se comprometem com interesses privados dos financiadores, favorecendo os economicamente poderosos às custas dos direitos das outras classes sociais; c) a possibilidade de enriquecimento ilícito dos que se apropriam privadamente dos fundos de campanha.

Torna-se, pois, evidente a necessidade de promover uma mudança institucional ou uma reforma política no país. Além de corrigir as falhas que apontamos (e muitas outras, que não mencionamos), uma reforma política republicana e democrática também terá como efeito mudar a forma da discussão sobre a corrupção e a relação

entre ética e política, pois a discussão tende a deslizar para uma atitude paradoxal porque, simultaneamente, pré e pós moderna.

A concepção pré-moderna da política ou teológico-política considera o governante não como representante dos governados, mas de um poder mais alto (Deus), que lhe confere a soberania como poder de decisão pessoal e único. Para ser digno de governar, o dirigente deve possuir um conjunto de virtudes pessoais que atestam seu bom caráter, do qual dependem a paz e a ordem. O governante virtuoso é um espelho no qual os governados devem refletir-se, imitando suas virtudes – o espaço público é idêntico ao espaço privado das pessoas de boa conduta e a corrupção é atribuída ao mau caráter ou aos vícios do dirigente.

Por seu turno, a concepção pós-moderna ou neoliberal aceita a submissão da política aos procedimentos da sociedade de consumo e de espetáculo. Torna-se da indústria política, que dá ao marketing a tarefa de vender a imagem do político e reduzir o cidadão à figura do consumidor. Para obter a identificação do consumidor com o produto, o marketing produz a imagem do político enquanto pessoa privada: características corporais, preferências sexuais, culinárias, literárias, artísticas, esportivas, hábitos cotidianos, vida em família, bichos de estimação, grau de escolaridade e bons costumes. O político como pessoa a ser vendida e o cidadão como pessoa compradora levam à identificação do espaço público com o espaço do mercado, isto é, dos interesses privados - a privatização das figuras do político e do cidadão privatiza o espaço público. Por isso a avaliação ética dos governos não possui critérios próprios a uma ética pública e se torna avaliação de virtudes e vícios pessoais dos governantes e, como no caso pré-moderno, a corrupção é atribuída ao mau caráter dos dirigentes e não às instituições públicas.

Ao contrário das anteriores, as concepções clássica e moderna da política fundam-se na distinção entre o público e o privado.

Podemos considerar Aristóteles o primeiro a ter clareza sobre a diferença entre o espaço público da política e o espaço privado dos interesses pessoais e grupais, levando-o a distinguir entre oikonomía e politiké. A primeira, (derivada de oikós, a casa, entendida como propriedade privada do chefe de família, detentor de bens imóveis, móveis e escravos) se realiza como administração da propriedade privada e como poder da vontade arbitrária do pai (o despotês) sobre os membros do oikós; em contrapartida, a segunda está referida à pólis como atividade pública fundada nas leis instituídas pelos cidadãos e referidas aos interesses e bens da cidade e aos direitos da

cidadania. Justamente por haver separado o publico e o privado, Aristóteles também distinguiu entre virtudes privadas e virtudes públicas, isto é, pensou numa ética pública, na qual a virtude central é a justiça. Distinguiu entre justiça do partilhável ou distributiva – que se refere à distribuição dos bens e ao problema da desigualdade -- e justiça do participável ou participativa – que se refere ao exercício do poder e à igualdade. A primeira se refere ao que pode ser dividido, distribuído, partilhado; porém a segunda, ao que não pode ser dividido nem distribuído, mas somente participado. Uma política é injusta ou corrupta, do ponto de vista distributivo, quando trata os desiguais de modo igual e justa quando trata os desiguais de modo de desigual. Por exemplo, suponhamos que tenha havido uma catástrofe natural e que se perderam as colheitas, acarretando fome; se for estabelecido pelo Estado que cada família receberá 20 quilos de cereais, sem que se leve em conta o tamanho da família e sem que se leve em conta que há famílias ricas, que podem importar alimentos, e famílias pobres, que não podem faze-lo, ou que há famílias pequenas, que podem lucrar vendendo o excedente recebido, e famílias grandes para as quais a quantidade de cereais é insuficiente, a decisão é injusta ou corrupta por que deu o mesmo tratamento aos desiguais quando deveria igualar todos tratando-os diferentemente. A justiça participativa se refere ao que só pode ser participado, ou seja, ao poder político, que pertence a todos os cidadãos igualmente. Uma política é injusta, neste caso, no sentido exatamente inverso ao da justiça distributiva, isto é, quando trata desigualmente os iguais, excluindo uma parte dos cidadãos do exercício do poder. Por isso a distinção aristotélica entre práxis e técnica é decisiva: se a política for considerada uma técnica, isto é, uma prática reservada a especialistas, excluindo os cidadãos, ela não será politicamente ética, mas corrupta, pois comete a injustiça quanto ao direito de igual participação no poder.

No caso da concepção moderna, podemos tomar como um de seus exemplos mais contundentes a abertura do Tratado Político, de Espinosa, que ali escreve: um Estado cujo bem-estar, segurança e prosperidade dependam das virtudes pessoais de alguns dirigentes é “um Estado fadado à ruína”. Para haver paz, segurança, bem-estar e prosperidade “é preciso um ordenamento institucional que obrigue os que administram a república, quer movidos pela razão quer pela paixão, a não agir de forma desleal ou contrária ao interesse comum.” Pouco importam os motivos interiores ou pessoais dos administradores públicos; o que importa é que as instituições os obriguem a bem administrar e bem governar. Virtudes e vícios do Estado não são virtudes e vícios privados dos dirigentes e dos cidadãos, mas virtudes públicas, isto é,

a boa qualidade das instituições, ou vícios públicos, isto é, deficiências institucionais. Eis porque a corrupção nasce da má qualidade das instituições políticas, incapazes de garantir a segurança dos cidadãos ao permitir que alguns particulares se apresentem com o direito para tomar as leis em suas próprias mãos e colocá-las a serviço de seus próprios interesses. A corrupção, portanto, não decorre de vícios privados de governantes e cidadãos, mas das condições do exercício do poder.

As posições de Aristóteles e de Espinosa nos permitem afastar a grosseira confusão entre espaço público e espaço privado contida na expressão “a ética na política”, hoje incessantemente propalada pelos meios de comunicação, como se se tratasse de deslocar o valores da vida privada para a vida pública quando a política nasceu justamente para realizar a distinção entre ambas graças à ética da política, referida à qualidade das instituições públicas.

11 de Outubro de 2016.

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11/10/2016 • Coluna ANPOF