A falácia da distorção da realidade na CPI da Pandemia

Matheus Oliva da Costa

Pós-doutorando em Filosofia (USP)

28/07/2021 • Coluna ANPOF

Assistimos neste ano de 2021 a uma Comissão Parlamentar de Inquérito, a CPI da Pandemia[1], criada para investigar de quem é a responsabilidade pela ineficiência governamental brasileira para lidar com a tragédia de mais de meio milhão de mortos pela pandemia de COVID-19. A ideia de verificar as causas desse problema, por um lado, é de natureza política por ser a expressão da fiscalização de ações do poder público. De outro lado, tem apresentado características epistemológicas, já que em diversos depoimentos apareceram dúvidas sobre se as pessoas envolvidas com o atual governo de fato sabem algo sobre a pandemia, as vacinas ou o uso de remédios como a cloroquina, e como esse suposto conhecimento é justificado. Nesse breve texto analisamos como alguns argumentos ligados a essa CPI podem ser entendidos pelo que o filósofo Xun apontou já na antiguidade como falácias da distorção da realidade. Defendemos que a proposta da epistemologia das virtudes contribui para superar isso.

O que seria essa falácia citada acima? No capítulo Nomeação correta ou Retificação dos nomes (Zheng ming) da obra Xunzi[2], o filósofo Xun (310-211 AEC) identifica três falácias. A segunda delas é descrita por ele da seguinte maneira, na nossa tradução: “Montanhas e abismos estão no mesmo nível”[3], “os desejos derivados das emoções são poucos”[4], “Carnes de animais de criação não são mais saborosas e grandes sinos não são mais divertidos”[5], estes são exemplos de usos confusos de objetos da realidade que levam a desordenar a linguagem. Se verificar a razão para diferenciar o igual e o diferente nessas expressões, e observar a coerência própria delas, então será capaz de contê-las”. Vamos analisar esse trecho.

A questão central é que o filósofo Xun aponta um processo da linguagem em que alguém faz usos confusos de objetos da realidade que levam a desordenar a linguagem, ou seja, usa discursos em que uma realidade confundida (RC) leva a confundir a linguagem (CL), ou seja, RC implica CL. Essa narrativa da realidade é falaciosa por embaçar as distinções que são condições necessárias para entender essa mesma realidade, como quando o filósofo Huishi (ou Huizi) afirma que “Montanhas e abismos estão no mesmo nível”. Se nós conhecemos as montanhas comparativamente pelas suas diferenças de nível ou altura em relação a outros objetos mais baixos, se essa referência for confundida não temos mais critérios para reconhecer o mundo a nossa volta.

O mesmo raciocínio se aplica à falaciosa indistinção entre objetos da realidade que nossos sentidos captam com mais ou menos intensidade. Nessa falácia não haveria carnes mais ou menos deliciosas e nem sinos muito ou pouco divertidos – seriam todos iguais. Dizer que tais objetos não têm diferenças, quando sensorialmente têm, e dizer que não têm semelhança quando são claramente iguais, são duas estratégias para causar confusão em nosso raciocínio. Assim, dificultam nossa capacidade de decisão e ação.

Na sentença do filósofo Song Xing (ou Songzi) de que “os desejos derivados das emoções são poucos”, a questão é menos óbvia, mas ainda sim inconsistente. O filósofo Xun argumenta que podemos observar que os desejos humanos derivam das nossas emoções naturais, que vêm do nosso caráter natural – nossa biologia, diríamos hoje. Os desejos humanos são muitos e produzidos constantemente conforme nossas necessidades biológicas, controlados apenas pelo nosso coração-mente, ou seja, por controle mental e emocional, o que era interligado na antiguidade chinesa. Tendo isso em vista, dizer que os desejos que vêm das emoções são poucos é novamente omitir uma realidade. Isso omitiria o fato de que todos nós, por sermos seres naturais (orgânicos), temos necessidades que serão produzidas continuamente, apesar do nosso querer racional, ainda que possam ser administradas mental e emocionalmente.

Sendo que para o filósofo Xun uma falácia não é apenas um discurso enganoso, como também implica ações equivocadas, ele propõe que devemos conter tais ações, sejam em nós mesmos ou nos outros. E por que até mesmo deve rejeitar o discurso dos outros? Pois, para ele, tais discursos têm um potencial social destrutivo que deve ser contido e até proibido, caso contrário, as consequências seriam graves em termos políticos e públicos. É justamente isso que observamos no Brasil atual, e a já citada CPI da Pandemia tem mostrado exemplos disso.

Observamos pelos menos três exemplos de falácias da distorção da realidade ligado à CPI da Pandemia.  (1) Observamos a meses a relativização do número de mortes[6], como se morrer centenas de milhares de pessoas fosse algo normal e aceitável, numa clara insensibilidade ao sofrimento humano, postura que motivou a necessidade de uma CPI em que isso é combatido por senadores como Randolfe Rodrigues (REDE). (2) Bolsonaristas defensoras(es) do uso da cloroquina como tratamento ao COVID-19 foram expostas(os) pelo senador Otto Alencar (PSD-BA) por confundirem os conceitos biológicos de “vírus” e de “protozoário”, já que defendiam um remédio (cloroquina) contra protozoários para combater um vírus. (3) Depoentes que defendem a ciência e trabalharam temporariamente no Ministério da Saúde, como Francieli Fantinato, deixaram claro que a posição de “não obrigatoriedade” de receber a vacina por parte da presidência, como se não fizesse diferença, prejudicou claramente a vacinação, aumentando irresponsavelmente o número de mortes.

É claro o impacto negativo dessas falácias na saúde pública brasileira, gerando milhares de mortes e muito sofrimento humano devido a uma visão equivocada de mundo que se tornou política oficial. Era exatamente isso que o filósofo Xun previa como consequência das falácias: não é apenas um discurso equivocado, mas gera ações erradas, e até a morte de pessoas e o caos social. Como evitar isso? Ele aponta que, uma vez que essa falácia citada visa confundir a linguagem inebriando distinções e semelhanças, então o antídoto é checar a coerência interna das sentenças, de um lado, e a relação da sentença com a realidade, de outro lado. Em outras palavras, é necessário verificar sua consistência lógica-dedutiva, e a verificação indutiva da sua correspondência com a realidade.

Contudo, um problema observado na tragédia brasileira é que para evitar falácias não tem bastado a checagem racional e científica. Estas são condições necessárias, porém não suficientes para conhecer de modo seguro e confiável. Nesse sentido, desde 1980 o filósofo analítico Ernest Sosa[7] tem proposto a união entre epistemologia analítica e a ética das virtudes aristotélica. Sosa defende que as condições suficientes para o conhecimento passam pela performance virtuosa do agente epistêmico como elemento chave para saber de modo confiável. A performance de cada pessoa passaria pelo desenvolvimento de virtudes intelectuais e da rejeição de vícios intelectuais. Assim, para as falácias descritas anteriormente, é importante que cada pessoa treine virtudes intelectuais, como honestidade e cuidado intelectuais, de forma a evitar vícios epistemológicos como arrogância e omissão, para assim conhecer de maneira mais confiável.

Observamos que, de modo equivalente a Sosa, Xun trabalha com uma conexão forte entre a construção humana de virtudes e o processo de conhecimento seguro. Mas o que este último pensador antigo oferece que Aristóteles já não ofereceu com a ideia de virtudes morais à proposta de Sosa? Dentre outros aspectos, o filósofo Xun tem como conceito central a virtude que traduzo como ritualidade (Li), o ato de saber se comportar adequadamente tal como se tivesse em uma cerimônia ritual, ou seja, com o mesmo grau de atenção, respeito e timing (perceber o momento certo). Agir com ritualidade no processo epistêmico significa ter um cuidado intelectual, transposto de um tipo de cuidado cultural que exige atenção mental, emocional e corporal simultaneamente.

Brasileiros são majoritariamente religiosos, e mesmo os não religiosos já participaram de ritos civis como ouvir em público o hino nacional, então provavelmente já experimentaram a solenidade desses atos sociais. O processo de deslizamento semântico da performance ritual dessas ocasiões para uma atitude de desenvolvimento da virtude de ritualidade intelectual pode ser um caminho seguro para mudar a atitude brasileira diante do conhecimento. Esse cuidado ritual com o conhecimento, se praticado, pode ser uma forma orgânica de aperfeiçoamento intelectual constante de brasileiros – e de todo ser humano. Como acreditar que tomar “vacina não é necessário” é uma proposição verdadeira e justificada, quando o cuidado, atenção e respeito com o conhecimento apontam o contrário? Por isso defendemos uma performance de solenidade ritual diante do conhecimento como uma virtude que contribui para combater vícios intelectuais.

 

 


[1] SENADO FEDERAL. CPI da Pandemia. Disponível em: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/comissao?codcol=2441>. Acesso 08/07/2021;

[2] XUNZI. Zheng Ming. In: STURGEON, D. Chinese Text Project. 2006. Disponível em <https://ctext.org/xunzi/zheng-ming>. Traduzido ao espanhol: <https://gongsunlongzi.wordpress.com/category/xunzi/>. Acesso 08/07/2021; 

[3] Frase atribuída ao filósofo Huishi.

[4] A frase é atribuída ao filósofo Song Xing.

[5] A primeira parte da frase é atribuída a Song Xing e a segunda parte a Mozi.

[6] P. ex.: SOARES, Ana Carolina. Famosos usam as redes sociais para propagar fake news da Covid-19. Veja, 11/04/2020 às 14h02. Disponível em <https://vejasp.abril.com.br/blog/terraco-paulistano/famosos-fake-news-coronavirus/>. Acesso 08/07/2021; NETTO, Paulo Roberto. Aliada de Aras relativiza mortes da pandemia no STJ: 'Estão politizando o covid'. Estadão, 08/04/2021, às 16h52. Disponível em <https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/aliada-de-aras-relativiza-mortes-da-pandemia-no-stj-estao-politizando-o-covid/>. Acesso 08/07/2021; 

[7] ERNEST SOSA. The Raft and the Pyramid: Coherence versus Foundations in the Theory of Knowledge. Midwest Studies In Philosophy, v. 5, n. 1, pp. 3–26. Disponível em <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1475-4975.1980.tb00394.x>. Acesso em 13/07/2021; Conferir referências e explicações em: SILVA FILHO, Waldomiro. Resenha - Pessoas epistemicamente virtuosas: sobre Epistemologia da virtude de E. Sosa. Philósophos-Revista de Filosofia, v. 18, n. 2, p. 293-312, 2013.

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