A urgente questão da Soberania Nacional e o conceito de nação como condições indispensáveis para se repensar o Brasil (Parte I)

Profa. Lilian S. Godoy Fonseca

(UFMG)

20/10/2021 • Coluna ANPOF

Entre março e julho de 2021, o Grupo Soberania Nacional da UFU e o Instituto Schiller Internacional promoveram o Curso de Extensão Internacional sobre o tema O sistema americano de economia política e sua herança crítica. Foram realizados encontros semanais, aos sábados, das 18 às 19h30; o curso foi organizado em 5 cinco módulos, abordando os seguintes temas: 1. As origens europeias do sistema americano; 2. O sistema americano de economia política; 3. List e o sistema alemão de economia política; 4. Marx e List na Rússia e 5. Herança contemporânea do sistema americano.

As aulas ficaram a cargo dos professores: Jairo Dias Carvalho - UFU/MG, Dennis Small - Instituto Schiller Internacional (ISI), Jacques Cheminade (ISI), Tim Rush (ISI), Rogério Mattos – UFF-RJ, Helga Zepp-LaRouche (ISI) e William Jones (ISI).

Cada módulo foi desenvolvido em três aulas[1], contemplando os principais autores e pontos mais relevantes concernentes aos respectivos tópicos. Os temas abordados se mostraram fundamentais para pensarmos o recente contexto mundial em geral e, em particular, a conjuntura atual de nosso país. Nossa proposta, aqui, é destacar três aulas que trouxeram elementos assaz pertinentes para uma possível reflexão sobre o Brasil com vistas a se buscar novos rumos no período posterior à Pandemia da COVID-19.

Duas delas integram o Módulo 3, a saber: a aula 1, que abordou o tema: “List, o conceito de nação e a crítica ao liberalismo”, do dia 08/05/2021 e a aula 2 sobre “List e o conceito de forças produtivas”, do dia 15/05/2021; além da aula 2 do Módulo 5 sobre “Álvaro Vieira Pinto - herdeiro longínquo do sistema americano?” do dia 10/07/2021, todas ministrada pelo idealizador e organizador do curso, o Prof. Jairo Dias Carvalho.

No que se segue, buscaremos fazer uma breve síntese dos principais conteúdos abordados em cada um desses relevantes encontros. E, para começar, cabe apresentar o pressuposto do curso, assim apresentado por Carvalho:

Qualquer nação pode se apropriar das ideias do ‘sistema americano de economia política’[2], reconhecido como o primeiro sistema econômico anti-imperialista, para construir sua independência, em relação às demais nações. Nesse sentido, trata-se de buscar elementos para se pensar o Brasil hoje, para além das ‘clausuras conceituais’, com vistas à elaboração de uma teoria da soberania compatível com as necessidades atuais de nosso país.

No Módulo 3, o ponto de partida de Carvalho foi a demonstração da relevância da contribuição do economista alemão Georg Friedrich List (1789-1846), fundamental dentro dessa proposta, porque com ele surge uma concepção com vistas a se criar uma teoria da soberania, que pode ser elaborada com base na realidade de cada nação, para tanto, buscando um projeto de criação de um “sistema nacional de economia”.

List parte, precisamente, da visão de que “uma nação é um sistema de economia” e não apenas um sistema ‘espiritual’ baseado na língua, nos valores e nas tradições compartilhados, como era defendido por todos os pensadores alemães à sua época.

O economista alemão visitou países como a França, a Inglaterra e a América do Norte e utilizou as ideias aprendidas em suas viagens para desenvolver seu próprio pensamento, para além das concepções de livre comércio de Adam Smith (1723-1790), que List adotou até constatar os efeitos benéficos à indústria de seu país, decorrentes do bloqueio napoleônico de comércio com a Inglaterra, imposto à Alemanha.

Esse fato foi especialmente relevante para a sua defesa de uma política econômica nacional que, nesse sentido, tinha por escopo criar um sistema nacional de economia. Em outras palavras, para List, tratava-se de criar uma nação!

Assim, segundo List, “a construção da soberania nacional envolve a luta no plano das ideias” contra o sistema de Adam Smith que defendia o livre comércio em favor dos interesses britânicos, mas em detrimento da emancipação dos demais países e colônias.

A noção central no pensamento listiano é a constatação histórica de que “Entre cada indivíduo e a humanidade inteira existe a Nação. (...) Segundo List, a Nação não é a soma ou um agregado de partes, mas um todo organizado, articulado, é um sistema. E o sistema nacional é um mundo.” (CARVALHO, 2021).

Desse modo, conforme o próprio List, o conceito central de seu sistema é o conceito de nação citado acima. E é no interior desse conceito que emerge o conceito de forças produtivas, sobre o qual buscaremos fazer uma pequena síntese do curso, conectado-o a outros elementos que ele nos trouxe, para pensarmos o Brasil atual.

A nação não é, portanto, um agregado, mas um sistema integrado formado por uma dimensão espiritual, mas também material, que visa manter sua existência de forma autônoma e independente. Isso significa que cada nação pretende alcançar sua autonomia, sobretudo no âmbito jurídico e é, precisamente, sobre esse aspecto que repousa o conceito de soberania.

Essa totalidade, sempre confrontada com outras de mesma natureza, só é capaz de conquistar e assegurar a sua própria autonomia, ou soberania, na medida em que consegue administrar, de forma satisfatória, os seus recursos e riquezas. E aqui emerge, portanto, na perspectiva de List, o conceito de forças produtivas.

O conceito listiano de forças produtivas engloba três diferentes fatores: o capital mental, o capital natural (matérias-primas) e o capital instrumental (materiais produzidos = tecnologia). Portanto, a riqueza de uma nação não se mede pelas mercadorias que produz, mas por sua capacidade de gerar riqueza. E, segundo List:

Tudo o que se gasta na instrução da juventude, na promoção da justiça, na defesa das nações etc. constitui um consumo de valores presentes em prol das forças produtivas. A maior parte do consumo de uma nação deve ser utilizada para a educação da geração futura, para promover e sustentar as forças produtivas nacionais do futuro. (Apud. CARVALHO, 2021)

Razão pela qual, na visão listiana, como bem destacado por Carvalho, atacar as ciências e as artes de uma nação é deprimir as suas forças produtivas! E, nesse sentido, lhe privar de um dos seus principais recursos e impedir que ela possa produzir riquezas!

Não por acaso, essas importantes formulações de List, feitas na transição entre os séculos XVIII e XIX, colidem frontalmente com a realidade de nosso país em pleno século XXI. Pois, lamentavelmente, o Brasil parece estar fazendo exatamente o oposto e, assim, colocando em risco a sua própria soberania.

O que nos leva ao tema da aula referente à importância do intelectual brasileiro Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) nessa relevante e urgente discussão.

Segundo Carvalho, dois tipos de pessoas mencionam, hoje, o pensamento de Vieira Pinto: 1. Pessoas não ligadas à Filosofia e 2. Pessoas da área da Filosofia que não leram, mas, ainda assim (e talvez por isso), criticam-no.

A hipótese de leitura de Carvalho assenta-se na sugestão de Henri Bergson (1859-1941), de que é importante distinguir entre as categorias usadas por um pensador para exprimir sua intuição e a sua própria intuição filosófica. Assim, segundo a hipótese de Carvalho, Vieira Pinto (AVP) tem sua intuição a respeito do Brasil e ele busca expressá-la com as categorias de sua época (e nem poderia ser diferente).

Portanto, ele parte de uma abordagem mais tradicional - com base, por exemplo, nas categorias de centro/periferia, utilizadas pela CEPAL[3]. Mas, segundo Carvalho, em função da ‘querela’ - ainda não superada no Brasil - quanto à escolha entre duas ‘vocações’ econômicas: agrícola ou industrial, tais categorias também estão presentes em sua reflexão. Sendo o Sistema Desenvolvimentista “um capítulo desse debate”.

Carvalho usa a imagem da pororoca para ilustrar a força do pensamento de AVP que identificou importantes problemas de nosso país, não sanados até o momento. Daí a relevância de lermos AVP, para pensarmos nosso contexto atual visando superá-lo.

O núcleo intuitivo de AVP em relação ao Brasil é o seguinte: O Brasil é uma nação proletária, pois não trabalha para si e não fornece trabalho para o seu povo! Para AVP, portanto, o desenvolvimento nacional implica a incorporação do trabalho ao país (e ao povo) e esse seria o princípio fundamental de toda política nacionalista. AVP, destarte, pensou o Brasil a partir de uma filosofia do trabalho. Para Carvalho, se Marx escreveu O CAPITAL, AVP escreveu O TRABALHO (nacional, na periferia mundial).

A continuidade do texto será apresentada na Parte II.


[1]. Todas as aulas estão disponíveis no Canal do Grupo Soberania Nacional no YouTube e todos os interessados estão convidados a assistir e compartilhá-las.

[2]. Estratégia de desenvolvimento econômico centrada num sistema de tarifas protecionistas, para promover o mercado interno e estimular a indústria nacional, em oposição ao ‘velho sistema colonial’ ou sistema britânico de livre comércio, de dependência em relação às metrópoles.

[3]. Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, criada em 1948 pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, para incentivar a cooperação econômica entre os países membros.