Coluna Anpof - Especial Mês da Consciência Negra "Do contrato social ao contrato epistêmico-racial"

10/12/2020 • Coluna ANPOF

Manoel Pereira Lima Junior 1

Em filosofia, as teorias sobre o contrato social têm lugar de destaque ao se referirem às dimensões moral e política da vida humana. Mas, e se falássemos que o contrato social implica em um contrato epistêmico, isso causaria “espanto filosófico”? Provavelmente, sim. É o que nos diz Charles W. Mills no texto Contrato Racial. Segundo Mills, a dimensão epistêmica foi negligenciada. De acordo com ele, os signatários e beneficiários (reais ou hipotéticos) do contrato social não só se submetem a instituições políticas e se obrigam a padrões de comportamento de benefícios mútuos, ligam-se também a hábitos e instituições epistêmicas de padrão de comportamento epistêmico, rconhecendo e mantendo mutuamente termos do contrato social.

Talvez cause menos estranheza se dissermos que sem trocas epistêmicas, possivelmente, não haveria contrato social, quer dizer: sociedade. Mas precisamos explicar de onde vem essa suposição. Edward Craig, em um texto entitulado Conhecimento e Estado de Natureza, disse que no estado de natureza existem necessidades epistêmicas. Segundo Craig, “o ser humano precisa de crenças verdadeiras sobre seu meio ambiente, crenças que podem servir para orientar suas ações para um resultado bem-sucedido. Sendo assim, eles precisam de fontes de informação que os levem a acreditar nas verdades” (CRAIG, 2002, p. 11). Esses são exemplos de práticas epistêmicas sem as quais não teria sido possível um contrato social. Aliás, na própria noção de contrato estão implícitos valores epistêmicos como credibilidade, verdade e sinceridade, por exemplo. Isso funda a “civilização”.

Caberia, agora, nos perguntarmos por que a dimensão epistêmica passou ao largo da tradição contratualista. A resposta é desconfortável, pois, tem relação com o que Miranda Fricker chamou de injustiça epistêmica. O conceito de injustiça epistêmica, como Fricker o desenvolveu, está atrelado à noção de poder social. Para ela, o poder social é uma capacidade social de agirmos uns sobre os outros, modificando o nosso comportamento social. Tem um tipo muito específico de poder social que Fricker chama atenção: o poder identitário. Este tipo de poder está relacionado a padrões e estereótipos sociais que têm por base de sustentação o imaginário social. Por exemplo: o que é ser um homem, ou ser uma mulher, ou ser homossexual, ou ser cristão, ou mulçumano, ou candomblecista, ou ser branco ou negro e por aí vai. Esses estereótipos estão vivos no imaginário social e servem de referência para os julgamentos de credibilidade espistêmica. O problema é que esse imaginário, quase sempre, é preconceituoso e com base nisso produz injustiça epistêmica a partir de estereótipos negativos de identidade.

Então, se aproximarmos a teoria do contrato social da dimensão epistêmica, podemos perceber que os beneficiários do contrato social não teriam os privilégios que têm sem outros dois tipos de contratos implícitos: um contrato racial e outro epistêmico. O poder social autoatribuído aos beneficiários do contrato social sustenta-se sobre julgamentos de credibilidade com base em preconceito de identidade. Esse preconceito epistêmico com base em julgamentos de estereótipos persegue as vítimas por todas as dimensões de sua vida: psicológica, social, moral, estética, religiosa, científica e política. E por que demorou tanto tempo para falarmos desse tipo de injustiça? Porque ela é validada em três planos distintos: individual, intersubjetivo e institucional. Fricker nomeou o primeiro de injustiça testemunhal e o segundo de hermenêutica. Elizabeth Anderson em um artigo sobre epistemologia da democracia e as virtudes das instituições democráticas chamou o terceiro de injustiça estrutural.

Evidentemente, essas são formas de opressão distintas das opressões políticas, econômicas ou jurídicas, por exemplo. Mas estão relacionadas com a estrutura do poder, como bem percebeu Anderson. Essas injustiças não seriam duradouras se não fossem validadas e sustentadas pelas instituições que servem de marcadores de credibilidade epistêmica. Para ficar em um exemplo simples, podemos pensar no currículo acadêmico ou escolar que deixa de fora saberes de comunidades e povos considerados menos importantes epistemicamente – embora nas comunidades acadêmicas e escolares haja alunos, professores e pesquisadores oriundos de grupos epsitêmicos marginalizados.

Bem, é possível que muitas dessas injustiças sejam praticadas inconscientemente. Para a criadora do conceito de injustiça epistêmica, Fricker, o preconceito epistêmico deriva de erro de julgamento ingênuo, caso contrário seria impossível identificá-lo e separá-lo do mau-caratismo puro e simples – mas pode ocorrer de virem juntos. E seguindo a mesma linha de raciocínio de Fricker, Gaile Pohlhaus Junior desenvolve o conceito de ignorância epistêmica deliberada: seria uma espécie de vício epistêmico inconsciente legitimado pelas instituições e coletivamente compartilhado. A partir do contrato epistêmico inerente ao contrato social ocorreria uma inversão no modo de perceber o mundo, pois, aqueles que criaram e se beneficiaram da injustiça se mantêm amplamente ignorantes dos acordos injustos pelos quais eles se beneficiaram. Mas, se for assim, cabe algum tipo de responsabilização? Sim, cabe.

Embora seja possível não haver responsabilidade moral, há responsabilidade epistêmica. Há uma espécie de ignorância ativa estimulada e encorajada que impede mudanças na base de nossas práticas epistêmicas. Para Pohlhaus Jr., “... os conhecedores epistêmicos dominantes são encorajados a ignorar a injustiça estrutural através do cultivo de hábitos particulares que direcionam sua atenção para longe da injustiça racial através de vícios epistêmicos” (2017, pg. 17). Isso permite, encoraja e incentiva vícios epistêmicos em grupos de indivíduos. Nesse caso, a ignorância é almejada, pois, faz parte do poder social desse grupo ignorar certos fatos ou fenômenos. Assim, usam a desculpa do desconhecimento para a perpetuação da injustiça – uma justificação epistêmica negativa. Isso, no entanto, não teria efeito se não fosse validado pelas instituições dominantes que conferem poder social a esses grupos.

Com isso, podemos perceber que a teoria do contrato social negligenciou aspectos importantes da nossa vida epistêmica. Aspectos cruciais para a sustentação e manutenção do próprio contrato. Sem essas injustiças epistêmicas com base em preconceito identitário dificilmente os beneficiários do contrato teriam podido impor sua visão de mundo como a única verdadeira, correta e moralmente superior. E mesmo que a injustiça epistêmica seja resultante de um erro de julgamento ingênuo, podemos notar que a ingenuidade ou a ignorância sobre certos aspectos da vida podem ser deliberados e intencionais, isto é, ignorância e má-fé podem vir combinadas como notara Frcker. Então, na base do contrato social já havia injustiça epistêmica com base no poder social do grupo dominante. Os signatários do contrato social são, ao mesmo tempo, signatários do contrato epistêmico e do contrato racial. Estes dois últimos definiram dois pares de opostos sob os quais a modernidade foi fundada: a) conhecedores e sub-conhecedores; b) humanos e sub-humanos. Como essa visão de mundo do contrato foi institucionalizada há séculos, temos dificuldade de admitir a nossa própria ignorância sobre ela e, com isso, acaba que legitimamos essas injustiças cometendo erros ingênuos de julgamentos com base em nossa identidade social e nosso lugar no mundo.

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1- Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação da UFBA e professor da rede pública do estado da Bahia.

 

Referências bibliográficas

ANDERSON, E. Epistemic Justice as a Virtue of Social Institutions. In. Social Epistemology. University of Michigan. April 2012.
CRAIG, E. Knowledge and the State of Nature. New York: Oxford University Press, 2002.
FRICKER, M. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford University Press, 2007.
MILLS, W. Charles. The Racial Contract. Ithaca: Cornell University Press, 1997.
POHLHAUS Jr., Gaile. Varieties of Epistemic Injustices. In. Handbook of Epistemic Injustice. Routledge, 2017.