Deus & Darwin: Breve Relato sobre o Argumento do Desígnio, a Memética e os Magistérios Não Interferentes

Maxwell Morais de Lima Filho

Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

02/08/2019 • Coluna ANPOF

 

De acordo com o teólogo inglês William Paley, a bondade divina se reflete no modo pelo qual Ele projetou os organismos biológicos, dotados de múltiplos órgãos bem-arranjados e inter-relacionados que visam à preservação e à reprodução da vida. Nesse sentido, o propósito da Criação seria dedutível da contemplação do domínio biológico porque o intricado ajuste entre as partes do sistema – seja o corpo como um todo, seja uma de suas partes (articulação esquelética, coração, olho etc.) – apontaria para uma inteligência sobrenatural, mais especificamente para o Deus revelado na Bíblia.

Da mesma maneira que o exame de um relógio aponta – por conta da harmonia entre seus parafusos, engrenagens, molas e ponteiros – para o artífice que o planejou para marcar as horas, a análise atenta das estruturas biológicas aduziriam a um “Relojoeiro”, cujas infinitas sabedoria e benevolência se estampariam nas obras da natureza: as articulações esqueléticas teriam sido arquitetadas para unir ossos e possibilitar o movimento, os corações teriam sido desenhados para bombear sangue e os olhos teriam sido delineados para enxergar. Por conta disso, aquele que se dedica a estudar a criação almejaria – humildemente, porque ciente de sua finitude e de sua imperfeição – conhecer a Mente de Deus, o Projetista e o Fabricador do Universo. Paley esmiuçou essa versão do argumento do desígnio em seu famoso livro Teologia Natural (1802), que tanto cativou um jovem conterrâneo seu: Charles Darwin.

Após abandonar a pretensão de ser médico, Darwin abraçou a conveniência de se tornar pastor e foi estudar na Universidade de Cambridge, ainda no tempo em que nutria a crença ortodoxa na veracidade e na literalidade de cada palavra das sagradas escrituras. Ao finalizar seus estudos acadêmicos, ele abraçou a oportunidade de ser acompanhante de Robert FitzRoy, capitão da marinha britânica que comandou o navio HMS Beagle. Como o próprio Darwin confidenciou, esse episódio, o mais importante de sua vida, foi determinante para assentar a sua trajetória como cientista. Foi nessa viagem ao redor do mundo, com duração de quase cinco anos, que ele pôde ficar extasiado diante das matas tropicais, ver exuberantes animais, observar os povos nativos, indignar-se com a escravidão brasileira, coletar fósseis e até mesmo testemunhar um terremoto de elevada magnitude no Chile.

Entretanto, foi somente após retornar à Inglaterra que a rigorosa análise dos dados e a sua criatividade acabaram desembocando na conceitualização do mecanismo de seleção natural, o qual o levaria a ser cada vez mais crítico ao argumento de que a natureza foi planejada: o fato de que a inteligência humana é a responsável pela fabricação de uma dobradiça de modo algum nos autorizaria a presumir que uma articulação biológica seja obra do desígnio divino, tendo em conta que podemos explicar naturalmente o surgimento dessa bioestrutura.

Apesar de a descoberta da seleção natural preceder em mais de vinte anos A Origem das Espécies (1859), foi nesse livro que Darwin utilizou evidências de vários campos do saber para melhor fundamentar a sua ideia. Em resumo, ele constatou que a insuficiência dos recursos provoca a disputa entre os indivíduos; contenda essa que impossibilita explosões populacionais. Estatisticamente, os organismos portadores de características anatômicas, fisiológicas ou comportamentais vantajosas sobrevivem e se reproduzem com mais frequência, transmitindo os caracteres proveitosos (que sejam herdáveis) à prole. Com o passar do tempo, essa sobrevivência diferencial é retratada pela maior frequência daqueles indivíduos com atributos favoráveis, isto é, aqui há uma gradual mudança – Natura non facit saltum – do perfil populacional.

Essa evolução biológica teria ocorrido também com a nossa espécie, ou ela teria se limitado a cajueiros, a moscas, a ratos etc? Apesar da tímida alusão à espécie humana no final d’A Origem das Espécies, Darwin já estava plenamente ciente de que somos abarcados pelo processo evolutivo desde o seu convencimento da falsidade do fixismo, por volta de 1837 ou 1838. Porém, o tratamento detalhado desse controverso tópico só viria com a publicação do livro A Origem do Homem e a Seleção Sexual (1871), que pretendia demonstrar que descendemos de formas ancestrais e, mais especificamente, sustentar que os nossos mais notáveis atributos são esclarecidos pela ótica da seleção natural: a colossal diferença das faculdades humanas em relação às dos outros animais não constituiria um impedimento para abordá-las naturalisticamente.

Mesmo que vários dos assuntos tratados por Darwin não fossem “novos”, não é raro que seu pensamento seja considerado um ponto de inflexão dentro das discussões biológicas e da cultura em geral. Dentre tantos outros, sua abordagem natural da cultura e do comportamento humano influenciou o zoólogo queniano Richard Dawkins, que conquistou fama mundial ao publicar sua obra O Gene Egoísta (1976). Depois de argumentar longamente nesse livro que o gene seria a unidade sobre a qual atua a seleção natural, o biólogo queniano advoga que a nossa distinção essencial perante o restante da natureza se encontra na cultura. Consoante Dawkins, há uma correspondência entre a transmissão genética e a nossa disseminação cultural: assim como a evolução biológica resulta da sobrevivência diferencial de fragmentos de DNA (genes), a evolução cultural se daria pela persistência de replicadores culturais (memes) exitosos.

Os memes (do grego, mímesis) englobariam ações como as que seguimos para preparar um bolo, para executar uma partitura musical ou para casar diante de um padre. Para o biólogo nairobiano, poderíamos explicar naturalisticamente a ideia de Deus – a qual teria se originado em incontáveis circunstâncias durante a história – como um replicador cultural que se propaga por sons, palavras, músicas e pinturas, enfim, “saltando” entre cérebros, ondas mecânicas e fibras vegetais. Em escritos posteriores, ele sustenta que o meme Deus é semelhante aos vírus biológicos no sentido de que o replicador cultural parasita o cérebro para se propagar de modo análogo ao uso que o vírus faz do aparato celular para produzir cópias de si. Dawkins assevera que, por serem depósitos de falsos e prejudiciais memes, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo deveriam ser combatidos com a mesma obstinação que usamos para enfrentar as pandemias viróticas. O legítimo e mais eficaz antídoto para cortar esse mal pela raiz seria o conhecimento científico.

Pensa de modo bem diverso outro sucessor de Darwin, o paleontólogo estadunidense Stephen Jay Gould. Em seu livro Pilares do Tempo (1999), ele discorda veementemente de que a relação entre Religião e Ciência seja conflituosa, haja vista que o magistério religioso zelaria pelo horizonte ético e o magistério científico estaria restrito ao contexto factual: enquanto as questões religiosas se debruçariam sobre os valores morais e o sentido da vida, as inquirições científicas se voltariam para a constituição e o funcionamento do Universo.

Por conta disso, Gould afirma que os conflitos que presenciamos tão frequentemente não passariam de mal-entendidos, seja daqueles religiosos que se baseiam em uma interpretação literal bíblica para afiançar que o Universo surgiu há poucos milhares de anos, seja daqueles cientistas que sentenciam que o conhecimento factual evolutivo é incompatível com a existência do sobrenatural (como é o caso da posição de Dawkins). Portanto, argumenta o paleontólogo estadunidense, seria imprescindível que religiosos e cientistas cumprissem o princípio de não interferência a fim de resguardarem um convívio respeitoso.

A análise pormenorizada dos divergentes modos como Dawkins e Gould veem o relacionamento entre Religião e Ciência excede o nosso presente objetivo, mas gostaríamos de apontar brevemente que alguns biólogos de primeira grandeza não professaram o ateísmo, como foi o caso de Alfred Russel Wallace, Thomas Huxley, Theodosius Dobzhansky e – por que não o incluir? – Stephen Jay Gould. Em realidade, o próprio Darwin escreveu o seguinte: “Jamais foi a minha intenção escrever como umateu. [...] Sinto, no mais íntimo de meu ser, que todo esse assunto é profundo demais para o intelecto humano”.

Finalmente, da perspectiva científica, o argumento teleológico de Paley cai por terra porque os seres vivos e suas estruturas são bem explanados naturalisticamente pela abordagem darwinista. Contudo, o naturalismo metodológico dessa abordagem não implica necessariamente que só existem entidades naturais. Isso quer dizer que o debate acerca do naturalismo metafísico e da existência de Deus passa ao largo das teorias científicas, sendo de competência dos filósofos.