É preciso descolonizar o arquivo! Ensaio sobre uma educação filosófica engajada

Jéssica Erd Ribas

Doutoranda (Educação/UFSM) e integrante do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Anpof

22/03/2022 • Coluna ANPOF

Nas últimas décadas a sociedade tem passado por significativas transformações. Com o assento da cultura do consumo digital e a proliferação do discurso consumista do projeto neoliberal de sociedade, não só os meios de comunicação e informação tem se alterado, como também, a perspectiva antropotécnica das relações do ser humano com o mundo está se modificando profundamente. Mais do que nunca estamos expostos à assombrosa corrida pela busca da sempre novíssima “novidade”. Desesperados pela inovação e movidos pela rapidez de encontrar sempre soluções contemporâneas para problemas há tempos enraizados no tecido social, com certa intransigência facilmente descartamos o passado, visualizando o mundo pela ótica da aceleração do futuro. Ocorre que o preço pago por esse imediatismo frenético pode estar causando impactos danosos ao nosso presente.

O filósofo Gilles Lipovetsky (1983, 2004, 2005), tematizou sobre esses impactos em muitas de suas produções, chegando a classificar o fenômeno sócio-cultural que traz às sociedades contemporâneas o culto à efemeridade como sendo expressão máxima de uma “era do vazio” e dos “tempos hipermodernos”. Ele demonstrou que estamos experimentando a degradação de princípios coletivos e humanísticos básicos, haja vista que mergulhados na racionalidade neoliberal do paraíso do bem-estar, elevamos à potência superlativa uma cultura hedonista e psicologista da satisfação imediata de necessidades individuais - ainda que esta cultura esteja decepando nossa alteridade e capacidade de defesa ética de um mundo mais justo e plural.

Além da máxima “consumir para se satisfazer”, outra característica marcante na cultura imediatista é o desprezo ou desprestígio pela formação de pensamento crítico. Isto porque, a paciência demandada para o conceito, para o estudo e para a justificação de crenças impõe um entrave à lógica da aceleração. Em entrevista ao Programa Milênio, Bauman (2016) [1] alerta que é o sistema educacional uma das grandes vítimas deste tipo de configuração social, pois, “educação e imediatismo são termos contraditórios e não se pode ter os dois ao mesmo tempo: ou se tem uma educação de qualidade ou se tem o imediatismo”. 

Pensemos na situação atual da educação brasileira, especialmente do Ensino Médio. No ano de 2016, o governo federal promoveu por meio de Medida Provisória, MP 746/2016, uma Reforma no Ensino Médio - que posteriormente tornou-se a Lei 13.415/2017 - com o pretexto de tornar o sistema educacional conectado com as demandas do século XXI e a educação dos(as) jovens mais compatível com a realidade do mundo do trabalho contemporâneo. 

Um dos resultados dessa Reforma, acentuados na Base Nacional Comum Curricular-BNCC, (2018), é a pulverização de disciplinas escolares consolidadas, como é o caso da Sociologia, Filosofia e Arte e a criação de itinerários formativos que visam a aprendizagem de habilidades de marketing, produção de conteúdo digitais, publicidade e propaganda para vendas em redes sociais, empreendedorismo, entre outros. 

Diversos(as) pesquisadores(as) constataram que a Reforma abandonou totalmente a concepção de uma educação voltada para a formação integral do(a) estudante, presente nos documentos legais que orientam a educação brasileira. O que parece estar posto na ordem do dia é a busca desenfreada pelo novíssimo que tanto pede o mercado. Em contrapartida, o exercício de um si político que pensa a si mesmo e ao mundo em que vive vai sendo enxotado pela era do imediatismo. 

As consequências desse processo podem ser severas e irreparáveis, já que, como alertou o filósofo Michel Foucault, ao esquecer de olhar o passado, nos esquecemos de perguntar por quem somos e como nos constituímos como sujeitos que somos. E após esquecermos isso, inevitavelmente nos esquecemos que esquecemos, tornando-se habitual e confortável olhar para as mazelas de nosso tempo como verdades incontornáveis.

 Por isso, penso que no seio dos desafios das ciências sociais e humanas na atualidade, está o combate para assegurar uma educação de qualidade que não seja abocanhada pela fera do vazio que despreza o conhecimento do passado e destrói as possibilidades de reflexão sobre o presente. E é justamente diante do reconhecimento desse desafio que concebo como tarefa da filosofia fornecer ao pensamento “paradas”, isto é, frenagens que permitam pelo exercício do filosofar diagnosticar e examinar  o mundo e as relações que nele estão sendo estabelecidas. 

Mas que estratégias a educação filosófica poderia criar para desacelerar a idolatria do imediatismo e obstruir as tentativas de apagamento da urgência da necessidade de consciência e reparação histórica? Para ensaiar uma tática de combate, recupero na noção de “arquivo”, teorizada por Foucault (2008), potencialidades que auxiliam a desalinhar os desprezos provocados pelos tempos hipermodernos. Passo então a perguntar: o que pode uma educação filosófica pelo arquivo? 

O termo arquivo adquire em Foucault (2008) usos muito diferentes daqueles que estamos acostumados na linguagem corrente. Não mais entendido como documentos que guardam a memória ou testemunho do passado, ele corresponde a um sistema de discursividade: “a lei que rege o que pode ser dito” e o “sistema que rege o surgimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (p. 170). Isso significa dizer, de modo muito geral, que o arquivo define alguns limites e formas de enunciados: limites e formas de decibilidade - aquilo do que é possível falar em determinada época e aquilo que foi constituído como domínio discursivo; limites e formas de conservação - define que tipo de enunciados estão destinados a ingressar na memória histórica, seja pela recitação, seja pela pedagogia ou pelo ensino; os limites e as formas da memória - que enunciados são reconhecidos como válidos ou inválidos (FOUCAULT, 2008, p. 169).

Por ser um sistema de discursividade o arquivo trava com eventos históricos, relações de poder e de saber. Ele seleciona, acolhe ou exclui aquilo que será registrado na história. Por isso, ele não se trata apenas de um conjunto de documentos e registros históricos, mas sim, de “monumentos históricos”, pois, seleciona o que vai ser arquivado como histórico ou o que vai ser esquecido e abandonado. Por fim, ele regula o que vai ser considerado como tradição e o que por ela vai ser sepultado. 

Uma educação filosófica pelo arquivo consiste em examinar os problemas dos quais o ser humano se ocupou, em diferentes épocas, escavando os discursos que deles provieram e os tipos de comportamentos, situações e relações que fabricaram. Ela permite investigar as obviedades e desmistificar aquilo que está cristalizado na história e na cultura. Permite, sobretudo, olhar para o passado com vistas a não repetir no presente os erros cometidos outrora. 

O arquivo abre para a educação filosófica a possibilidade de “na leitura do outro, relançar a herança” (FISCHER, 2005) às questões da atualidade, inquirindo, inclusive, a própria história. Já que da história, costumeiramente, nós sabemos apenas a versão de um discurso vencedor. De tudo o que aconteceu no passado, sabemos apenas o lado contado pelos discursos que fizeram parte do grupo, do campo, da ordem de quem venceu uma determinada relação de poder (SIMINONI, 2016).

Considerando isso, penso que a educação filosófica emerge como força transgressora lá onde ousa a perguntar: é possível ensinar a transgredir pelo arquivo? Colocar essa questão para a comunidade filosófica, tem o sentido de posicionar o debate diante do giro decolonial, atentado para uma situação específica que dele decorre: é necessário descolonizar o arquivo! Esse é um processo que implica, por sua vez, examinar regimes de verdade, que ao longo da história humana, regulam e distribuem determinados conhecimentos como mais ou menos válidos, como mais ou menos conhecidos, como mais ou menos legítimos. 

 

Descolonizar o arquivo é uma ação importante na compreensão e combate do racismo epistêmico e preconceito de gênero culturalmente presentes na construção das sociedades modernas. A partir daquilo que conhecemos como sendo a “tradição do pensamento ocidental” erigiram poderosos arautos que direcionaram a noção “arquivo dos clássicos” como expoentes de uma maioridade intelectual branca, masculina e eurocentrada. Nesse sentido, importa, ao pensar uma educação filosófica pelo arquivo, revisitar as noções de “clássico” e “tradição” cristalizadas na cultura.  

Basta observarmos expressões corriqueiras do vocabulário acadêmico tais como “é preciso voltar aos grandes clássicos da tradição filosófica” ou “é necessário conhecer a tradição” que prontamente nos deparamos com um endereço fixo para o desenvolvimento do pensamento filosófico - a Europa. Além, evidentemente, da forte presença de personagens brancos e masculinos figurando o desfile de personalidades representantes desta dita tradição.  São expressões que derivam de um processo histórico e cultural bem conhecido e que legitimam a aceitação de certa hierarquia epistêmica que se desenvolveu a partir de uma perspectiva eurocentrada, racial e sexista do conhecimento, a qual fora chamada pelo filósofo Maldonado-Torres (2018) “colonialidade do saber”. 

Não há dúvidas que sobre o saber incidem determinados jogos de força que conduzem para fora da zona de enunciação de textos e personagens consagrados, sujeitos e grupos sociais que não correspondem ao Velho Mundo e ao fatiamento político-epistêmico estabelecido pela “colonialidade do poder” (MALDONADO-TORRES, 2018).  Não é novidade que mulheres e pessoas não-brancas estiveram por muito tempo às margens do saber considerado especializado, erudito e científico. O que resultou, justamente, na construção da ideia de cânone como representante ilustre de personalidades masculinas, brancas e eurocentradas. 

O impacto disso tudo na educação e nos processos de escolarização são gigantescos e nefastos, pois, ao se perpetuar a colonialidade do saber e do poder (MALDONADO-TORRES, 2018), perduram em nossas relações sociais, construções éticas, estéticas e políticas que são estruturadas pelo racismo, sexismo e xenofobia. Basta ver que pouco ou quase nada conhecemos sobre fenômenos éticos, políticos, estéticos, sociais, históricos e filosóficos que não sejam contados ou produzidos pela branquitude. Basta ver que figuram em nossas listas referenciais - para quaisquer que sejam os assuntos - uma maioria esmagadora de homens brancos. 

Essas são preocupações que desaguam em temas que ocupam centralidade na crítica contemporânea e das quais fazem eco na nossa construção da potência da educação filosófica pelo arquivo. Como mencionado anteriormente, sendo o arquivo um sistema de discursividade que acolhe ou exclui aquilo que amolda uma tradição, cabe então que façamos algumas perguntas: Que textos e sujeitos foram consagrados na história como clássicos? Que mecanismos de poder operacionalizam a construção social do clássico? Que personagens são culturalmente considerados representantes de uma tradição a ser transmitida? Como esse processo ocorre? Como determinados saberes ocupam a posição de tradição? O que é, por fim, “tradição”? 

Na companhia de Bell Hooks (2013) encontro pistas para pensar uma educação filosófica “engajada” que potencialize a construção de práticas de liberdade. É necessário fazer erigir forças minoritárias que possibilitem ensinar a transgredir os processos que cristalizam e fixam uma estrutura social desigual. Acredito que uma educação filosófica engajada com a perspectiva anticanônica, encontre na descolonização do arquivo forças para dar a ler e conhecer o pensamento e a história de sujeitos que sofrem com mecanismos de interdição sobre suas palavras e subjetividades.

Trazer à tona, pelo arquivo, o pensamento, as visões de mundo, as percepções sobre os fatos históricos a partir de pessoas que tiveram seus saberes sujeitados (FOUCAULT, 2008), seja pelo pacto silencioso de branquitude (SCHUCMAN, 2012), seja pelo pacto silencioso de masculinidade ou pela colonialidade do saber (MALDONADO-TORRES, 2018), significa promover um giro na lógica colonial e tornar enunciável uma história feita, contada e percebida pelos miseráveis, pelos des-apropriados, pelas mulheres-infames, pelos infantes, pelos desviantes e pelos des-viados; pelos paupérrimos, pelos des-conhecidos, pelos des-afortunados, pelos desdenhados, pelos loucos, pelos subalternizados. Enfim, uma história feita por baixo (FOUCAULT, 2010) e, para todas as solidões.

A educação filosófica, nessa perspectiva, muito tem a contribuir com a visibilidade de “monumentos históricos” silenciados por determinadas relações de poder presentes na construção do mundo moderno/colonial, bem como, a tomar como problema a condição de consumo imediatista presente em nossa sociedade. 

Imagino que uma educação filosófica precisa ser capaz de criar narrativas transgressoras que possam produzir “sub-versões da versão oficial” (ASPIS; GALLO, 2010, p. 18),  estabelecendo, por fim, formas de combater as opressões que sofremos e produzimos. Precisamos ser convidados(as) a filosofar e a expressar, à nossa maneira, o que temos pensado sobre o mundo que nos foi legado e o que dele estamos construindo. E, se ensinar filosofia, pode funcionar como “semear sementes ao vento” (GALLO; ASPIS, 2010), a educação filosófica engajada em descolonizar o arquivo pode funcionar como terreno fértil para a criação de forças minoritárias que possam sentir que resistir e questionar ainda é possível.

[1]  Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jan-01/zygmunt-bauman-neste-seculo-estamos-num-estado-interregno

Referências 

FISCHER, Rosa Maria Bueno. Escrita acadêmica: arte de assinar o que se lê. In: COSTA, Marisa Vorraber; BUJES, Maria Isabel Edelweiss (orgs.) Caminhos investigativos III: riscos e possibilidades de pesquisar nas fronteiras. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. p.117-140. 

FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975 - 1976). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Trad. Luis Felipe Baeta Neves. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2008.

GALLO, Silvio; ASPIS, Renata Lima. Ensino de Filosofia e Cidadania nas sociedades de controle: resistência e linhas de fuga. Pro-posições, Campinas, v. 1, n. 21, p. 89-105, jan./abr. 2010.

HOOKS, Bell. Ensinando a Transgredir: A educação como prática de liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013. 

LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista. São Paulo: Manole, 2005. 

LIPOVETSKY, Gilles; CHARLES, Sébastien. Os Tempos Hipermodernos. São Paulo: Barcarolla, 2004.

LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio – Ensaios Sobre o Individualismo Contemporâneo. Barueri: Manole, 1983.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Analítica da Colonialidade e da Decolonialidade: algumas dimensões básicas. In: Decolonialidade e Pensamento Diaspórico MALDONADO-TORRES, Nelson; BERNARDINO-COSTA, Joaze; GROSFOGUEL, Ramón. (Org.). 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. (Coleção Cultura Negra e Identidades).

SCHUCMAN, Lia Vainer.  Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2014.

SIMINONI, Rafael Lazzarotto. Arquivo, história e memória: possibilidades de diálogo entre Luhmann e Foucault. Lua Nova: São Paulo, 2016.