Edição do Genoma Humano: Algumas Reflexões Éticas

Darlei Dall’Agnol

UFSC/CNPq

06/10/2016 • Coluna ANPOF

            Os desenvolvimentos recentes de técnicas de edição do genoma humano têm levantado várias preocupações éticas na comunidade científica mundial e na sociedade em geral. Osurgimento, a partir 2012, da técnica conhecida como “CRISPR-Cas9” e seu potencial revolucionário de edição do genoma não apenas de plantas e animais não-humanos, mas também de interferência planejada nos fatores genéticos da reprodução humana causou uma acalorada discussão entre cientistas e sociedade mundo afora.

Um grupo de renomados cientistaslogo fizeram uma chamada por uma moratória nas pesquisas de edição de genoma humano;[1] outros defenderam a sua utilização dentro dos limites do ethosde toda e qualquer atividade tecnocientífica.[2] No presente ensaio, pretendo apresentar algumas reflexões éticas sobre se devemos ou não apoiar técnicas de edição do genoma humano. É quase desnecessário alertar que, dado o caráter de novidade do tema, não tenho pretensão alguma de passar um julgamento final sobre o assunto. Meu objetivo é contribuir para uma discussão mais esclarecida com vistas à regulamentação e à eventual utilização adequada dessas técnicas. Para alcançar essa finalidade, usareiprincipalmente o documento “Genomeediting: anethicalreview,” publicado no dia 30 de setembro de 2016, pelo NuffieldCouncilonBioethics,[3]dada a pouca bibliografia a respeito.[4]

            Para iniciar, vou apresentar uma técnica simples daquilo que pode também ser, metaforicamente, chamado de edição do genoma humano. Como sabemos, desde o surgimento da biologia molecular, vários métodos permitiram a edição gênica, desde a tecnologia do DNA recombinante que produziu o primeiro rato transgênico em meados da década de 1970 até formas de interferência diretas nas células embrionárias já praticadas desde o final do século passado. Há poucos dias, foi noticiado o nascimento do primeiro bebê (Abrahim Hassan) com três pais genéticos, a partir de um procedimento liderado por médicos americanos, mas feito no México, pois nos USA ele não é permitido.[5] O bebê, aparentemente sadio, foi o resultado da aplicação de métodos de reprodução humana que utilizaram testes que identificaram uma doença (Síndrome de Leigh) que seria transmitida pela mãe por causa de uma alteração no DNA mitocondrial. Assim, cientistas extraíram o núcleo de alguns óvulos maternos einseriram na base citoplasmática de óvulos de uma doadora sem defeitosjá com o núcleo extraído. A extração do núcleo pode ser feita antes (spindle nuclear transfer) ou depois (pronucleartransfer) da fertilização com o espermatozoide do pai. O procedimento deu certo e o embrião implantado não tinha alterações nas mitocôndrias. O resultado é que o bebê nasceu com a maior parte das características genéticas do pais que são transmitidas pelo núcleo do óvulo, mas com o DNA mitocondrial de uma terceira pessoa, sem a doença genética que seria herdada via DNA mitocondrial.O procedimento conhecido como “pronucleartransfer” foi aprovado pelo Parlamento Britânico,em 2015, e espera-se para logo mais o nascimento de outros bebês com 3 pais genéticos. Aparentemente, nenhum dos dois procedimentos poderia ser feito no Brasil, pois a Lei de Biossegurança proíbe a engenharia genética em células germinais humanas. Tenho, em vários escritos, defendido a mudança dessa lei exatamente para possibilitaro procedimento acima descrito, em especial, o spindle nuclear transferque não implica na destruição de embriões. A justificação dessa técnica pode ser dada pelos tradicionais princípiosbioéticos da não-maleficência/beneficência respeitada, claro, a autonomia dos progenitores e outros direitos básicos. Nesse sentido, os princípios prima facie da bioética parecem se constituir num bom referencial para analisarmos a eticidade de pesquisas de edição gênica, principalmente, se estamos discutindo as suas utilizações em caráter experimental para seres humanos.

            Para iniciar a discussão sobre o uso da técnica CRISP-cas9 para fins similares, vou apresentar antes algumas definições e esclarecimentos.O método CRISPR-Cas9 resultou, sem entrar aqui em tecnicidades, da descoberta de um sistema de defesa contra ataques de vírus na bactéria Streptococusspyogenes e da possibilidade de sua adaptação para editar genomas. Eis uma ilustração desse procedimento:

 crisp

CRISP usa uma enzima (em branco) e guias de RNA (em azul) para cortar o DNA num determinado ponto (em vermelho) e substituí-lo por uma sequência de DNA editada. Fonte: Nature, 519, 12, March 2015. (Molekuul/ Science Photo Library)

Essa técnica pode ser usada para fins terapêuticossubstituindo material genético com defeitos por material genético normalnum número suficiente de células que inseridas poderiam, por exemplo, combater tumores.Ela pode também ser usada paramelhoramento genético, isto é, de potencialização de certas características biológicas desejadas a partir de modificações nas células germinais ou em zigotos. Essa técnica tem um potencial revolucionário tanto pelo seu baixo custoe alta eficácia (já estão sendo comercializados kits de edição gênica por menos dez mil dólares) quanto pela larga escala de aplicações. Ela está revolucionando a agricultura e a pecuária superando técnicas agora consideradas “rudimentares” como as antigas de produção de OGMs e até mesmo criando formas artificiais de animais editados geneticamente.[6]Recentemente, foipublicado um bom trabalho apontando as potenciais transformações nessa área.[7]Não vou discutir essas aplicações das técnicas de edição gênica de plantas e animais não-humanos aqui.

A técnica do CRISP-cas9 pode serusada para potencializar melhoramentos físicos, mentais, etc. e talvez até mesmo morais de seres humanos. Para mencionar alguns problemas morais suscitados pelo procedimento, vou usar agora a seção 3 dojá mencionado documento Genomeediting: anethicalreview. O grupo de trabalho do NuffieldCouncilfez um “Call for Evidence” procurando identificar a percepção pública e as principais preocupações em relação à referida técnica. Através de entrevistas, procurou identificar também os padrões éticos usados para analisar a aceitabilidade ou não de certos usos de técnicas de edição gênica. Por isso, antes de analisar alguns dos resultados, é necessário examinar o próprio referencial ético utilizado.

Segundo o documento Genomeediting(2016: p.28), há duas formas de estabelecer a aceitabilidade ou não de tais técnicas: uma delas é julgar a partir de um padrão moral tal como ele é encontradonos discursos sobre direitos humanos que se fundam na dignidade inalienável do ser humano; outra é usar um cálculo consequencialista sobre possíveis benefícios ou malefícios de certos cursos de ação. O primeiro padrão que claramente apareceu nas entrevistas estábaseado nos direitos humanos cuja principal vantagem seria demarcar limites toleráveis a comportamentos e usos aceitáveis das diferentes tecnologias. Os direitos humanos são geralmente apresentados como fundamentos para exigências no exercício de certas liberdades individuais, especialmente contra a interferência por autoridades públicas. Os direitos humanos, desse modo, marcariam como aceitáveis ou não certas práticas, mas não permitiriam uma análise comparativa de diferentes cursos de ações, por exemplo, sobre o que se perde ou ganha com a proibição de algo que se considera em si errado. Essa avaliação é feita a partir do consequencialismo, o qual sustenta serem os resultados dos atos que determinam sua moralidade ou não. Nas entrevistas, destacou-se o papel de um utilitarismo bem-estarista tanto porque supera os limites estreitos do clássico baseado exclusivamente em estados psicológicos de prazer e dor quanto permite uma mensuração objetiva. Parece, por conseguinte, adequado manter o referencial bioético acima mencionado que combina princípios deontológicos e consequencialistas.

Um dos aspectos éticos mais inquietantes sobre os possíveis usos de técnicas como o CRISP-cas9 estão, na minha visão, relacionadas com questões de justiça. Nesse sentido, apoiei a moratória temporária nas pesquisas sobres edições com embriões humanos (cf. meu post “The ethicsofembryoediting”)[8] contra as análises puramente baseadas em custo-benefício, eficácia e segurança de Gyngell, Douglas e Savulescu. Nesse sentido, fico satisfeito em perceber que as questões relacionadas com justiça social e as condições de uma sociedade equitativa tenham aparecido no “Call for Evidence” do documento do NuffieldCouncil (2016, p.29-31). Não é necessária muita capacidade imaginativa e de especulação para dar-se conta de que o uso de técnicas de melhoramento do genoma humano levarão, se não forem reguladas de forma justa, a um aprofundamento nas desigualdadesindividuais e sociais não apenas entre países que permitirem tais técnicas e os que eventualmente não permitirão, mas também internamente entre aqueles Estados que as utilizarem sem dar condições para que todas as pessoas que necessitem das técnicas possam ter acesso a elas. Aqui surgem vários problemas de justiça global, de justiça entre gerações etc. incluindo sobre saúde humana. Se forem adotadas essas técnicas para fins terapêuticos, tanto reprodutivos quanto de terapia gênica, políticas públicas claras e um sistema de saúde universal serão condições para evitar um agravamento da desigualdade social existente. O desafio torna-se ainda maior se levarmos em conta que vivemos em sociedades pluralistas com divergências significativas sobre várias questões morais, incluindo sobre justiça. Infelizmente, não posso explorar mais esse tema nos limites deste ensaio.

Tendo feito algumas observações sobre o referencial ético que podemos usar para discutir a aceitabilidade ou não de técnicas tais como o CRISPcas-9 para edição do genoma humano, gostaria agora de voltar às questões pontuais dos possíveis usos para fins reprodutivos. Claramente, em analogia com o procedimento de transferência de núcleos de óvulos para evitar doenças degenerativas causadas pelo DNA mitocondrial, os usos terapêuticos das técnicas de edição gênica como o CRISPcas-9 poderiam, se se mostrarem realmente confiáveis, ser permitidos, pois são justificados por todos os princípios éticos acima mencionados. Por outro lado, a utilização de procedimentos de edição gênica para melhoramento humano para além dos processos curativos precisa ser discutida com maior profundidade tanto por cientistas e filósofos quanto pelo público em geral.

Parece-me, todavia, adequado evitar a radicalização no debate seja no sentido de um “bioconservatismo” seja na aceitação não-crítica de toda e qualquer tecnologia sem atenção aos seus impactos efetivosnas condições de vida das pessoas. A primeira posição contrapõe ‘natureza’ e ‘tecnologia’ exagerando na confiança em relação à primeira; os “tecnoprogressistas,” na segunda. A busca de um equilíbrio entre aspectos naturais e tecnologiasparece, entretanto, ser constitutivo da nossa forma de vida.  Se técnicas tais como o CRISP-cas9 estão ou não nos aproximando de uma perspectiva pós-humana não pode ser aprofundado aqui. Por outro lado, parece que não existem impedimentos morais para que se usem essas técnicas para fins terapêuticos, sejam reprodutivos ou não. 

[1]Lanphiers, E. et al. Nature, vol. 519, 26 March 2015, p.41.

[2] Cf. http://blog.practicalethics.ox.ac.uk/2015/03/editing-the-germline-a-time-for-reason-not-emotion/

[3] Uma versão completa pode ser encontrada aqui: http://nuffieldbioethics.org/project/genome-editing/ethical-review-published-september-2016/

[4]A revista The American JournalofBioethics (v. 15, n.12, Dez 2015) publicou uma série de artigos sobre edição gênica (cf. http://www.bioethics.net/journals/ajob-volume-15-number-12/)No Brasil, o tema começa a ser discutido.  Cf. Marcelo de Araújo “Brasil e genoma humano, discussões sobre CRISP-cas9”: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6525&secao=489

[5] https://www.newscientist.com/article/2107219-exclusive-worlds-first-baby-born-with-new-3-parent-technique/

[6] A China não apenas usa tais procedimentos para produzir animais não-humanos, mas também já modificou embriões humanos não viáveis. Cf. http://www.nature.com/news/chinese-scientists-genetically-modify-human-embryos-1.17378

[7] Cf. Hall, S. Editando o cogumelo. Scientific American Brasil. (14)167, 2016. p.89-97.

[8] http://blog.practicalethics.ox.ac.uk/2015/04/the-ethics-of-embryo-editing/

06 de Outubro de 2016.

            Os desenvolvimentos recentes de técnicas de edição do genoma humano têm levantado várias preocupações éticas na comunidade científica mundial e na sociedade em geral. Osurgimento, a partir 2012, da técnica conhecida como “CRISPR-Cas9” e seu potencial revolucionário de edição do genoma não apenas de plantas e animais não-humanos, mas também de interferência planejada nos fatores genéticos da reprodução humana causou uma acalorada discussão entre cientistas e sociedade mundo afora. Um grupo de renomados cientistaslogo fizeram uma chamada por uma moratória nas pesquisas de edição de genoma humano;[1] outros defenderam a sua utilização dentro dos limites do ethosde toda e qualquer atividade tecnocientífica.[2] No presente ensaio, pretendo apresentar algumas reflexões éticas sobre se devemos ou não apoiar técnicas de edição do genoma humano. É quase desnecessário alertar que, dado o caráter de novidade do tema, não tenho pretensão alguma de passar um julgamento final sobre o assunto. Meu objetivo é contribuir para uma discussão mais esclarecida com vistas à regulamentação e à eventual utilização adequada dessas técnicas. Para alcançar essa finalidade, usareiprincipalmente o documento “Genomeediting: anethicalreview,” publicado no dia 30 de setembro de 2016, pelo NuffieldCouncilonBioethics,[3]dada a pouca bibliografia a respeito.[4]

            Para iniciar, vou apresentar uma técnica simples daquilo que pode também ser, metaforicamente, chamado de edição do genoma humano. Como sabemos, desde o surgimento da biologia molecular, vários métodos permitiram a edição gênica, desde a tecnologia do DNA recombinante que produziu o primeiro rato transgênico em meados da década de 1970 até formas de interferência diretas nas células embrionárias já praticadas desde o final do século passado. Há poucos dias, foi noticiado o nascimento do primeiro bebê (Abrahim Hassan) com três pais genéticos, a partir de um procedimento liderado por médicos americanos, mas feito no México, pois nos USA ele não é permitido.[5] O bebê, aparentemente sadio, foi o resultado da aplicação de métodos de reprodução humana que utilizaram testes que identificaram uma doença (Síndrome de Leigh) que seria transmitida pela mãe por causa de uma alteração no DNA mitocondrial. Assim, cientistas extraíram o núcleo de alguns óvulos maternos einseriram na base citoplasmática de óvulos de uma doadora sem defeitosjá com o núcleo extraído. A extração do núcleo pode ser feita antes (spindle nuclear transfer) ou depois (pronucleartransfer) da fertilização com o espermatozoide do pai. O procedimento deu certo e o embrião implantado não tinha alterações nas mitocôndrias. O resultado é que o bebê nasceu com a maior parte das características genéticas do pais que são transmitidas pelo núcleo do óvulo, mas com o DNA mitocondrial de uma terceira pessoa, sem a doença genética que seria herdada via DNA mitocondrial.O procedimento conhecido como “pronucleartransfer” foi aprovado pelo Parlamento Britânico,em 2015, e espera-se para logo mais o nascimento de outros bebês com 3 pais genéticos. Aparentemente, nenhum dos dois procedimentos poderia ser feito no Brasil, pois a Lei de Biossegurança proíbe a engenharia genética em células germinais humanas. Tenho, em vários escritos, defendido a mudança dessa lei exatamente para possibilitaro procedimento acima descrito, em especial, o spindle nuclear transferque não implica na destruição de embriões. A justificação dessa técnica pode ser dada pelos tradicionais princípiosbioéticos da não-maleficência/beneficência respeitada, claro, a autonomia dos progenitores e outros direitos básicos. Nesse sentido, os princípios prima facie da bioética parecem se constituir num bom referencial para analisarmos a eticidade de pesquisas de edição gênica, principalmente, se estamos discutindo as suas utilizações em caráter experimental para seres humanos.

            Para iniciar a discussão sobre o uso da técnica CRISP-cas9 para fins similares, vou apresentar antes algumas definições e esclarecimentos.O método CRISPR-Cas9 resultou, sem entrar aqui em tecnicidades, da descoberta de um sistema de defesa contra ataques de vírus na bactéria Streptococusspyogenes e da possibilidade de sua adaptação para editar genomas. Eis uma ilustração desse procedimento:

 


[1]Lanphiers, E. et al. Nature, vol. 519, 26 March 2015, p.41.

[2] Cf. http://blog.practicalethics.ox.ac.uk/2015/03/editing-the-germline-a-time-for-reason-not-emotion/

[3] Uma versão completa pode ser encontrada aqui: http://nuffieldbioethics.org/project/genome-editing/ethical-review-published-september-2016/

[4]A revista The American JournalofBioethics (v. 15, n.12, Dez 2015) publicou uma série de artigos sobre edição gênica (cf. http://www.bioethics.net/journals/ajob-volume-15-number-12/)No Brasil, o tema começa a ser discutido.  Cf. Marcelo de Araújo “Brasil e genoma humano, discussões sobre CRISP-cas9”: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6525&secao=489

[5] https://www.newscientist.com/article/2107219-exclusive-worlds-first-baby-born-with-new-3-parent-technique/

DO MESMO AUTOR

EDIÇÃO DE GENES E PROBLEMAS MORAIS NA INTERFACE ENTRE BIOÉTICA E NEUROÉTICA

Darlei Dall’Agnol

UFSC/CNPq

04/11/2016 • Coluna ANPOF