Estamos imunes ao autoritarismo? Notas sobre o ensino de filosofia

10/09/2020 • Coluna ANPOF

Frederik Moreira dos Santos –

Docente da UFRB/CETENS – Licenciatura em Educação do Campo

Doutor em Ensino, Filosofia e História das Ciências pelo PPGEFHC-UFBA/UEFS

Membro do Centro de Estudos de Dewey e Pragmatismo, e do Grupo de Pesquisa

Poética Pragmática – UFBA

 

Estamos vivendo tempos de tensões provavelmente irreversíveis entre modos de vida social. De um lado grupos querendo polarizar o debate político e, de outro, grupos buscam ser ouvidos para que suas subjetividades na forma de ser e agir possam ser garantidas. Tal debate sugou o interesse na construção de políticas públicas educacionais que impactam a própria política escolar. Um exemplo recente deste tipo de cooptação foi o projeto político-educacional chamado: Escola Sem Partido. Discutirei duas principais questões nesta apresentação: 1) O conflito de crenças, na educação filosófica, seriam uma barreira para a sua aprendizagem? 2) Quais mudanças cognitivas poderíamos esperar? Mostrarei que apesar do problema da mudança de crença, na construção de conhecimento, não adquirir tanta relevância na aula de filosofia, o fantasma da mentalidade autoritária (TEIXEIRA, POLO 1975; LIMA et al. 2020) assombra o avanço da troca intelectual interdisciplinar. Defenderei que este fantasma é que deveria ser o alvo, de qualquer política educacional, para ser exorcizado.

Para iniciar nossa discussão, devemos levar em conta o seguinte dilema epistêmico: ao nos depararmos com o conceito clássico de conhecimento como crença justificável e verdadeira, encontramos asserções provenientes de campos disciplinares diferentes que podem ser irreconciliáveis. Se colocarmos a aceitação (como verdadeiras) das afirmações feitas pelos conteúdos disciplinares como um dos objetivos necessários para se alcançar o sucesso no processo de ensino-aprendizagem, então veremos que vários problemas emergem. É comum se afirmar que se deve buscar construir ou reconstruir conhecimento como resultado do processo de ensino- aprendizagem, portanto, se partimos desta definição de conhecimento, a mudança de crença, ou mudança conceitual, deverá ser o objetivo central do ensino. Assim, corre-se o risco de que o ambiente escolar se torne um campo de batalha ou de doutrinação. A resposta que propomos é através da articulação dos termos “entendimento”, “crença” e “conhecimento” inter-relacionados com os conceitos de “democracia”, “tradições de investigação”, “diálogo” e “pluralidade” numa perspectiva pragmatista em que teoria do conhecimento, avanço das pautas sócio-igualitárias e organização política se aproximam intimamente. Desse modo, poderemos analisar, a partir desta perspectiva filosófica, como esta articulação intelectual (articulação presente em textos da Linda ALCOFF, como o que foi traduzido para o português em 2016) implica numa ação pedagógica crítica sobre o ato de ensinar filosofia.

Acreditamos que o caminho do diálogo e da argumentação é o melhor a ser seguido se quisermos construir uma educação significativa e sensível ao pluralismo cultural. (1) Somos a favor de um uma educação filosófica que vise priorizar o entendimento das perspectivas e soluções trazidas pelas diversas tradições de investigação do pensamento e da Natureza. No entanto, se colocarmos a aceitação dos conteúdos disciplinares como um dos objetivos educacionais de forma imperativa, então veremos que vários problemas emergem, a maioria relacionados a bloqueios emocionais para a reflexão e falta de abertura ao diálogo (WANG et al. 2009, nos USA; LOPES 2013, no Brazil). Para que um diálogo efetivo ocorra, cada participante deve estar aberto a possibilidade de estar errado, ou seja, os atores do processo devem compartilhar uma postura falibilista. Não obstante, Kitcher (1982, p. 164) resgata uma metáfora declarada por John Dewey (1859-1952) há decadas atrás e que se encaixa perfeitamente aos nossos propósitos aqui: 

Ter a mente aberta, ele sugere, é como colocar um tapete de boas-vindas em frente ao chão da porta e estar preparado para ser acolhedor com aqueles que tocam a campainha. Isto não é equivalente a deixar a porta escancarada e colocar uma faixa em cima desta dizendo “Pode entrar. Não tem ninguém em casa!” (tradução nossa)

Como sabemos, partir de uma perspectiva pragmática não significa entrar em um jogo multicultural de “vale tudo”, de que tudo será “bem-vindo”. Estamos tratando de tradições históricas com o compromisso de solucionar problemas da vida prática e social comum (DEWEY, 1974, p. 214). Tradições que nos fornecem condutas para ações efetivas de intervenção na Natureza. Esta efetividade está atrelada ao grau de sucesso na solução dos problemas materiais e sociais dentro de cada tradição, e seus critérios são fornecidos por cada comunidade de investigação. As sociedades democráticas contemporâneas têm aparentemente proporcionado a construção de uma pólis mais universalizada com uma ciberágora hipertextual, onde o acesso a tais tradições se torna ainda mais possível. Porém, a despeito deste espaço aparentemente mais democrático, ele não está livre de estruturas autoritárias e ações políticas antidemocráticas. Apontamos para a descontextualização histórica, política e étnica, como um dos principais fatores que empobrecem estas experiências investigativas e de ensino-aprendizagem. Estas afirmações ganham ainda mais sentido dentro do escopo do naturalismo humanista e da teoria do conhecimento de John Dewey, pensamento tão presente nos escritos e ações do nosso saudoso Anísio Teixeira. Ponto central para tratarmos de um conceito de conhecimento que evite, desnecessárias ou aparentes, contradições e dicotomias, principalmente a dicotomia entre os conceitos de compreensão e de conhecimento (como um conjunto de verdades), ou respeito e conflitos (2) .

O pragmatismo deweyano por este ser antidogmático, evitar confusões semânticas, defender um naturalismo humanista sensível aos valores sociais democráticos (tais como, cooperação, criticidade, abertura ao diálogo, abertura às possibilidades de revisão doxástica etc) e aberto a formas de investigação que não se resumem à científica (MOREIRA-DOS-SANTOS e EL-HANI 2017) exemplifica a postura antiautoritária presente em muitas tradições filosóficas. A teoria do conhecimento deweyana abre caminho para uma discussão sobre as diversas tradições de investigação e constituição de suas ontologias, realidades e Naturezas.

Dentro desta perspectiva, qualquer normatividade é uma aposta prognóstica permitida a partir de um olhar histórico. Um exemplo deste resultado é o peso que os valores democráticos adquiriram no decorrer do séc. XX a partir da experiência humana, tentando lidar com problemas de organização social que promovam a equidade e um maior bem-estar social entre todos os indivíduos. Assim, destacamos que uma das contribuições relevantes trazidas por esta perspectiva para a discussão sobre a teoria do conhecimento e os objetivos da educação diz respeito à sua abertura não autoritária em relação ao conhecimento. Aqui jaz o limite para o diálogo.

Quanto a sua perspectiva educacional, Dewey defende um tipo de educação que esteja a serviço do enriquecimento de nossas experiências. O padrão nos processos de investigação nos fornece um exemplo de como experienciamos o mundo. Assim, o papel das comunidades de formação educacional é crucial para a socialização e a reprodução dos resultados das investigações dentro de cada tradição representados nos espaços formais e não-formais de ensino-aprendizagem. Um ambiente em que haja restrição na liberdade para se vivenciar ou acessar (obter informações sobre) experiências no mundo, irá restringir também o processo criativo para se buscar a resolução de problemas. Quanto mais democrática for uma sociedade, e maior for o investimento em um sistema educacional público e de qualidade, maior será a possibilidade de se acessar a variedade das experiências humanas acumuladas historicamente dentro do contexto de uma determinada comunidade. É no campo da interação social e apresentação dos problemas que emergem desta interação que surge a necessidade da abertura para o diálogo e compartilhamento de experiências coletivas para se resolver tais problemas. A confrontação de conhecimentos, perspectivas políticas e condutas é essencial para que o diálogo e o entendimento se realizem.

Estamos chamando a atenção para que os educadores dediquem algum tempo para ouvir e dialogar com seus alunos de forma dialógica, e sempre que tais temas vierem à tona, que parte deste tempo seja dedicado à análise das possíveis aproximações e diferenças intersubjetivas. Assim, podemos responder a pergunta presente em nossa introdução: O conflito de crenças, na educação filosófica, seriam uma barreira para a sua aprendizagem? Depende de como esta é feita. Não devemos temer o papel social dos conflitos, devemos temer é o empobrecimento dos debates, dos compartilhamentos de experiências, da contraposição de ideias, da argumentação e do entendimento da diferença. Um projeto educacional nunca deve estar a serviço de nenhum processo hegemônico e nem deve buscar nenhuma forma de unanimidade, muito menos promover o silenciamento quando deve-se promover a crítica. Nada disso significa se enveredar em uma cruzada em prol da doutrinação e dogmatismo, que cria um ambiente tão inóspito aos valores democráticos. Faz-se necessário criarmos mecanismos que nos alertem para este risco, pois, parafraseando Saramago, a democracia pode ser o caminho legítimo que nos leva a políticas altamente repressivas. (3)

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Referências bibliográficas:
ALCOFF, L. M. Uma epistemologia para a próxima revolução. Sociedade e Estado. Brasília, n. 1, v. 31, jan/abr, 2016. Disponível em: http://periodicos.unb.br/index.php/estado/article/view/21425/15326
DEWEY, J. Lógica - a teoria da investigação - cap. VI e VIII. (Coleção Os Pensadores). Tradução de Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

POSNER, G. J.; STRIKE, K. A.; HEWSON, P. W. e GERTZOG, W. A. Accommodation of a scientific conception: Toward a theory of conceptual change. Science Education, 66 (2): 211-227, 1982. Disponível em: http://www.ud.infn.it/URDF/laurea/idifo1/materiali/g5/Posner%20et%20al.pdf
KITCHER, P. Abusing Science: The Case Against Creationism. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 1982. LIMA, R. S. de; JANNUZZI, P. de M.; MOURA JUNIOR, J. F.; SEGUNDO, D. S. de
A. Medo da violência e adesão ao autoritarismo no Brasil: proposta metodológica e resultados em 2017. Opin. Publica [online]. 2020, vol.26, n.1 [cited 2020-08-30], pp.34-65. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-62762020000100034&lng=en&nrm=iso
LOPES, P. Reação de aluno ateu a bullying acaba com pai-nosso na escola. Revista Forum, 2013. Disponível em: http://revistaforum.com.br/blog/2013/04/reacao-de-aluno- ateu-a-bullying-acaba-com-pai-nosso-na-escola/

MOREIRA-DOS-SANTOS, F., EL-HANI, C. N. Belief, Knowledge and Understanding. Sci & Educ 26, 215–245 (2017). Disponível em: https://doi.org/10.1007/s11191-017-9891-5.

SARAMAGO, J. El Correo de Andalucía. Portugal, Escritor, n. 1922, 2003.
WANG, J.; IANNOTTI, R. J., e NANSEL, T. R. School bullying among adolescents in the United States: Physical, Verbal, Relational, and Cyber. Journal of Adolescent Health, 45, pp. 368-375, 2009. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.2009.03.021
TEIXEIRA, J. B.; POLO, A. A personalidade autoritária: componentes e gênese psicológica. Arquivo Brasileiro de Psicologia Aplicada. Rio de Janeiro, vol. 27, nº 4, out.-dez. 1975. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/abpa/article/download/17538/16282

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1- O foco central deste texto não está em construir uma abordagem multicultural, apenas estamos preocupados em discutir possibilidades de se abordar o contexto de múltiplas vozes na sala de aula (ambiente pluricultural), evitando conflitos desnecessários, ou seja, que não levam a soluções propositivas.
2- Tal tipo de tensão dicotômica alimentou a retórica do projeto de lei “Escola Sem Partido”.
3- É quase auto evidente o quanto que a cibercultura e a internet tem promovido um espaço de controle sem precedentes na história. Mecanismos de ação democrática e de ciberguerrilha têm ajudado a garantir o espaço de luta e de debate político, porém não devemos tomar isso como garantido, pois ao mesmo tempo, nunca tivemos as condições materiais tão favoráveis para o estabelecimento de um Estado ou políticas autoritárias com o auxílio destes meios.