Filosofar, perguntar... dança do vento, dança do pensamento na escola pública de periferia

Edna Olímpia da Cunha

Mestre em Filosofia da Educação pela UERJ; Núcleo de Estudos de Filosofias e Infâncias (NEFI/UERJ)

21/10/2021 • Coluna ANPOF

“A primeira coisa que eu faço é abrir a janela e contemplar o espaço”

Carolina Maria de Jesus

Perguntar, perguntar-se. O que uma escola pública de periferia e uma universidade podem quando estudam, partilham perguntas, entrelaçam vozes, bordam desenhos inusitados na pesquisa em educação? Quando nasce uma pergunta? O que fazemos quando ela surge e se traduz em palavras? Não sabemos quando uma pergunta pode surgir, por quanto tempo ela nos acompanhará e até onde pode nos levar. Uma das características mais potentes e singulares das crianças é o gosto por perguntar. Na cena pedagógica quase que invariavelmente as perguntas tornam-se instrumento de testagem. Perguntamos aos/às nossos/as estudantes para classificá-los/las entre os/as que sabem e os/as que não sabem. Este é um percurso muito conhecido, que Freire (2017, p. 74) chamou de “burocratização” das perguntas. É essa a relação com a pergunta que o projeto de pesquisa e extensão Em Caxias, a filosofia en-caixa? A escola pública aposta no pensamento, em parceria com o Núcleo de Filosofias e Infâncias - NEFI/UERJ, tem nos convidado a pensar e repensar. 

O projeto teve início em 2007 em duas escolas do município de Duque de Caxias: Joaquim da Silva Peçanha e Pedro Rodrigues. Atualmente ainda resiste na primeira escola referida, sob a coordenação da professora Vanise Dutra Gomes. Foi pensado para atender apenas as turmas de crianças do primeiro segmento do ensino fundamental em seu momento inaugural. Na escola Joaquim da Silva Peçanha se estendeu para todos os segmentos, inclusive para EJA – Educação de Jovens e Adultos. 

O gosto pela roda, pela dança do pensamento com as perguntas desenhou movimentos inesperados, potentes e desafiadores. Os tempos de pandemia trouxeram mais perguntas em torno do que significa estar juntos, sobre os sentidos da escola, das nossas relações. Queremos voltar para a roda, sentir o pensamento bailar com a intensidade das vidas que habitam a periferia. Sim, nossos/as estudantes da periferia estão retornando às aulas presencias. Nas rodas de filosofia já nos perguntávamos o que significa estar presente na escola, na universidade. Depois de meses em que muitos/as de nós nos encontramos através de uma tela planificada, sentimos saudade dos encontros, dos abraços. Perguntamos, perguntamos... suspendemos um pouco a urgência das respostas... nas salas de aula nos preocupamos demais com as respostas. E as perguntas sem respostas? O que fazer delas? O fazem conosco? Por que insistimos em perguntar? Os nossos porquês... entramos, nos acomodamos em cadeiras, fechamos a porta. Mas eis que entre quatro paredes vão se abrindo janelas. Talvez as perguntas na roda do pensamento sejam janelas, sejam um modo de abrir, de deixar entrar ar nos lugares fechados. Abrir janelas, sentir o ar, o sopro e o canto, a dança do vento, a dança do pensamento. Perguntas-ventos, brisa. Desarrumar as coisas, desprender-se de algumas amarras, ventania. 

A filosofia é bagunceira, irrequieta. Talvez por isso na escola a filosofia vire “fisolofia”. Por quê? Por que insistimos em perguntar? Vento que não para de ventar. As crianças parecem não ter medo de perguntar e quando o fazem não são apenas movidas por uma curiosidade peculiar, o fazem com desejo de partilha, para convocar a presença do outro, do diverso, do seu olhar, da sua escuta. Cuidar da nossa relação com a pergunta não seria um dos modos mais potentes de resistir às lógicas asfixiantes, opressoras? Buscamos pensar o exercício filosófico de perguntar como um modo de habitar um mundo em aberto, com as infâncias, na cena pedagógica. Nesse sentido, tomamos como nosso o desafio proposto por Freire de “reconhecer a existência como um ato de perguntar” (2017, p. 74). Desse modo, perguntar seria também “partilhar a própria partilha”, uma verificação da igualdade na “exposição de uns aos outros, de uns com os outros, de uns entre outros” (NANCY, 2016, p. 18). Muito além de uma mera expressão linguística, perguntar com as infâncias também nos faz pensar numa ‘poética da relação”, “naquilo que ao permutar com o outro nos/se transforma” (GLISSANT, 2005, p. 39). 

Mais ainda: “como ser a si mesmo sem fechar-se ao outro, e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo?” (GLISSANT, 2005, p. 28). Que mundos dentro e fora de nós pode abrir uma pergunta? Talvez essa seja uma das dimensões mais potentes de uma educação filosófica, lidar com o tempo, com a intensidade das perguntas. Um/a professor/a, em sua formação, geralmente não é preparado para lidar com as indagações dos/das estudantes do modo como praticamos e vivenciamos nas experiências de pensamento, em que o perguntar dá movimento ao pensamento, permitindo que se pense o que ainda não foi pensado, tornando-se um modo de habitar um mundo em aberto. 

Um desafio interessante de uma educação filosófica é estar em atenção à intensidade do perguntar e à fragilidade de uma pergunta, atender ao instante que surge como oportunidade, kairós, uma brisa que sopra para acolher algo que se desprende de nós para ser compartilhado com outro(s). O tempo de uma pergunta nos aproxima de uma certa poética do efêmero e do frágil, que nos convida a suspender a preocupação com os resultados tão esperados na lógica da escolarização. O que acontece na cena pedagógica quando o tempo das perguntas transborda o próprio limite do tempo cronológico numa sala de aula? Além de ensinar/aprender a curiosidade indagadora, faz-se necessário criar condições para atender, para cuidar das perguntas, da intensidade de quem pergunta, dos desdobramentos de uma dimensão filosófica que tensiona vários aspectos da lógica de escolarização, inclusive o lugar do professor como aquele que sabe e está autorizado a falar, a perguntar para obter respostas. É como se perguntar abrigasse o som de um chamado, de algo que nos convoca a estar no mais íntimo de nós mesmos e ao mesmo tempo compartilhar a própria solidão em abertura ao outro, ao mundo, à vida... ar, brisa, ventania...

 

Referências:

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antônio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.

GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética do diverso. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005.

JESUS, Maria Carolina de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

KOHAN, Walter O.; OLARIETA, Fabiana Beatriz (Org.). A escola pública aposta no pensamento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

NANCY, Jean-Luc. A comunidade inoperada. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2016.