Filósofos racistas

24/09/2020 • Coluna ANPOF

Douglas Lisboa Santos de Jesus

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFBA

O verbo de 2020 é cancelar. Qualquer pessoa que não pertença a grupos historicamente marginalizados ou oprimidos e que faça ou fale algo que possa ser interpretado como uma ofensa a esses grupos, é cancelada. É um tipo de linchamento — um linchamento intelectual. Isso aconteceu há pouco com David Hume. A Universidade de Edimburgo revogou uma homenagem a ele porque pessoas — quais? — não estavam mais confortáveis com um filósofo racista. Como se nota, o cancelamento é paternalista. Nesse caso específico, o cancelamento impede o debate franco e aberto sobre a participação de filósofos na elaboração de teorias racistas. Sugiro que sigamos na direção oposta.

O racismo não é exclusividade da Europa moderna. Filósofos árabes, tanto na Idade Média quanto na Modernidade, eram racistas (1). Deve-se reconhecer, porém, que foi na Modernidade que as teses racialistas ganharam força. Justin Smith, que se dedicou ao tema, diz que entre os séculos XVI e o XVII houve uma mudança na teorização do problema da diversidade humana. Ele especula que essa mudança tenha a ver, de um lado, com o tipo de justificação da diversidade (se religiosa, metafísica ou naturalista) e, do outro, com a possibilidade dos humanos terem surgido de uma só vez ou se cada povo seria uma espécie com origens distintas. Subjaz a essas especulações, embora Smith não diga, a descoberta da América e a expansão europeia, capitaneada por Portugal, pela costa da África subsaariana, pela Índia Mogol e pela China.

Coisa curiosa da época é a indeterminação sobre o sentido de “raça”. Os dicionaristas portugueses Raphael Bluteau e Antônio de Morais Silva diziam que raça se aplicava a animais e só por analogia a pessoas. Ambos concordavam, contudo, que “ter raça”, quando em alusão a pessoas, significava ter “sangue infecto”, i.e., ser descendente de judeus, mouros ou negros. J. Smith ignora a experiência ibérica, concentrando-se, em vez, na figura de François Bernier, aluno de Pierre Gassendi. Sua classificação, porém, reflete somente a organização geográfica do homem, fruto das andanças do filósofo pelo Império Mogol na carona dos portugueses.

Embora Bernier não tenha sido um racista avant la lettre, sua classificação ajudou a moldar o debate racial na Modernidade. Ele era bem conhecido na Alemanha, tendo entre seus leitores Leibniz, Kant e Johann Friedrich Blumenbach, o pai do estudo comparativo dos crânios. Se o racialismo ibérico se mostrava hesitante, haja vista a quantidade de mulatinhos nos trópicos, o resto da Europa via as cores com muita nitidez. É, com efeito, nessa mudança teórica da filosofia para a ciência dos crânios que Smith vê o surgimento do essencialismo que, na visão dele, caracteriza o racismo dos modernos (2).

O racismo de Hume consiste num parágrafo do ensaio “Of National Characters”, de 1748 (3) . Nele o autor se propõe responder se as peculiaridades de cada nação decorrem de causas físicas, como pensava Montesquieu e alguns antigos, ou morais. (Nem a pergunta nem a resposta são originais para a época.) O autor entende por causas morais todas as circunstâncias que podem ter influência sobre a mente humana como razões ou motivos que, então, passam a constituir hábitos. A distinção relevante é que as causas morais são contingentes.

Surpreende, portanto, que o autor acrescente na edição de 1753 a seguinte nota:

Posso suspeitar que os negros e, em geral, todas as outras espécies de homens (pois há quatro ou cinco tipos) são naturalmente inferiores aos brancos. Nunca houve uma nação civilizada de qualquer outra cor que não a branca, nem mesmo qualquer indivíduo eminente tanto em ação quanto em especulação. Nenhuma empresa engenhosa entre eles, nenhuma arte, nenhuma ciência. Por outro lado, os mais rudes e bárbaros dos brancos, como o antigo alemão e os atuais tártaros, ainda têm alguma eminência; em seu valor, forma de governo ou alguma outra particularidade. Essa diferença uniforme e constante não poderia acontecer, em tantos países e épocas, se a natureza não tivesse feito uma distinção original entre essas raças de homens. À parte nossas colônias, existem escravos negros espalhados por toda a Europa, dos quais ninguém jamais descobriu qualquer indício de esperteza; embora a gente baixa, sem educação, comece entre nós e se destaque em todas as profissões. Na Jamaica, de fato, eles falam de um negro como um homem de dotes e erudito; mas é provável que ele seja admirado por ténues proezas, como um papagaio, que fala algumas palavras, apenas.

Frise-se primeiramente o uso do método per genus proximum et differentiam specificam, típico dos manuais de lógica medievais. Haveria, pois, o gênero humano, composto por várias espécies que se diferenciam primariamente pela cor da pele. Depois, Hume faz uma hierarquia intelectual que deveria corresponder a uma hierarquia entre as espécies. Essa afirmação não se encontra em Bernier. Outra diferença em relação a Bernier é a correlação entre a (suposta) superioridade das sociedades brancas e a (suposta) superioridade da
espécie branca. Tese parecida se encontra em Ibn Khaldun, embora não haja notícias de que Hume o leu.

O problema da nota é o “naturalmente inferior”. Caso as diferenças entre brancos e negros fossem decorrentes de causas morais, então seria mais fácil contornar as acusações, ainda que isso não tenha sido obstáculo para outros racistas (4) . A declaração acima faz de Hume um bom candidato ao essencialismo racista do qual J. Smith fala.

O texto de Hume teve uma repercussão desproporcional ao seu tamanho. O escravocata Edward Long usou Hume quando quis mostrar que negros, apesar de alguns exemplos da época, não poderiam atingir o mesmo nível intelectual que os brancos e que, portanto, deveriam ser dominados por estes (5). Long até menciona Francis Williams, o enigmático jamaicano sobre o qual Hume fala na nota. Williams foi objeto dum pitoresco experimento social que tinha como propósito saber se um negro poderia, através da educação, equiparar-se a um branco (6). E ele não foi o único. Anton Wilhelm Amo, na Alemanha, e Phillis Wheatley, nos EUA, eram “experimentos” bem conhecidos.

As declarações de Hume foram contestadas já no séc. XVIII. Veja-se, por exemplo, James Beattie em An Essay on the Nature and Immutability of Truth (1770). Ele reproduz a nota de Hume para, então, contra-argumentar que nações da Europa já foram tão selvagens quanto as da África, não sendo esse um bom motivo para dizer que os povos da primeira são superiores aos da segunda. Quanto à tese da inferioridade natural, Beattie não pôde fazer mais do que dar exemplos conhecidos de negros intelectuais bem-sucedidos. Essa estratégia foi adotada também por Henri Grégoire em Littérature des Nègres (1808), cujo objetivo era mostrar que os negros eram tão inteligentes quanto os brancos.

Tudo isso considerado, Hume deveria ser cancelado? Não! Note-se a diferença: Hume é o maior filósofo da Escócia apesar de racista e não porque era racista. É insensato pedir que filósofos sejam moralmente incorrigíveis. Ninguém é imune ao erro. É um equívoco, portanto, reduzir toda a vida intelectual dele a esse único episódio. Por outro lado, também é um equívoco tentar suavizar as declarações dele em razão de sua indiscutível relevância filosófica. É perturbador ver como Long usa suas ideias para justificar essa instituição.

É preciso abandonar o paternalismo dos canceladores, que tentam colocar negros, mulheres, homossexuais, etc. em situação de perpétua menoridade. Veja-se, a esse respeito, o que fez Richard Popkin, historiador do ceticismo moderno. Desde a década de 70 ele dedicou publicações e encontros acadêmicos ao racismo dos modernos, em particular o de Hume, que tanto o escandalizou. E em vez de retirar esses filósofos da grade curricular ele fez perguntas que um bom filósofo deveria fazer; e.g., o racismo de Hume é consequência de seu empirismo?; os chamados racionalistas eram racistas?; o racismo tem uma ontologia própria?, etc. Popkin foi taxativo: Hume era um “empirista preguiçoso” e “pesquisador desonesto”, uma vez que a existência de negros intelectuais deveria, em razão do seu empirismo, obrigá-lo a rever a nota (7). Se a conclusão é justa, ignoro.

O racismo é um dos episódios mais importantes para a compreensão de algumas incongruências da Modernidade. O Brasil, sendo a epítome das incongruências modernas, não deveria se perder nos jargões canceladores. Podemos fazer de nossa vantagem cultural nossa vantagem acadêmica.

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1 Vide textos de Ibn Khaldun (séc. XIV) e al-Hasan ibn Muhammad al-Wazzan al-Fasi (séc. XVI).

2 Smith, Nature, Human Nature & Human Difference: Race in Early Modern Philosophy, 2015, p. 144; p. 33.
3 Hume, Essays: Moral, Political and Literary. Londres, 1882, pp. 244-257. Presente no Philosophical Works, vol. III.

4 Denis Diderot, “Humaine espèce”, in: Encyclopédie , Paris, 1765, 8:344.
5 Long, History of Jamaica, de 1774, Livro III, p. 376.
6 Recorde-se que Rousseau rejeitou a possibilidade de seu Emílio ser negro, pois, dizia ele, era pouco provável encontrar um negro instruído. Outrossim Kant vai chegar às mesmas conclusões de Hume, que é textualmente mencionado (ver Kant, Anthropology from a pragmatic point of view, 1798, n. 42. Tradução de Robert B. Louden.)

7 Popkin, “Hume’s Racism Reconsidered.” In The Third Force in Seventeenth–?Century Thought, 1992, p. 73.