Homenagem a Oswaldo Porchat - Prof. Dr. Roberto Bolzani

05/12/2017 • Coluna ANPOF

A primeira vez em que falei com Oswaldo Porchat foi ao telefone, de um orelhão. Eu estava terminando minha graduação de Filosofia na USP e pretendia fazer Mestrado sobre algum tema em Platão, meu filósofo favorito. Nesse momento, primeiro semestre de 1985, soube que Porchat voltaria ao Departamento, vindo da UNICAMP. Eu havia assistido a uma conferência feita por ele em meu ano de ingresso no curso, 1980, ou no ano seguinte. E, mais importante, adquirira um fino volume de artigos publicado pela Brasiliense, intitulado A filosofia e a visão comum do mundo, contendo artigos dele, de Bento Prado e Tércio Ferraz. Não me lembro exatamente em que momento de minha graduação li esses artigos, especialmente “O conflito das filosofias”, “Prefácio a uma filosofia” e o artigo que dá o título ao volume, de Porchat, e “Por que rir da filosofia”, de Bento, mas nunca me esqueci do notável efeito que produziram em mim. Hoje, passados mais de trinta anos, sinto-me mais capaz de expressar o que sentia então: estavam ali dois exemplos paradigmáticos de algo que, mais tarde também entendi, me fascinava em Platão, uma aliança bem-sucedida entre profundidade de reflexão e escrita primorosa. Aqueles textos, junto com alguns artigos de Gérard Lebrun, me convenciam de que a Filosofia estava viva, de que ainda era possível pensar com o vigor e a originalidade que eu podia observar nas várias filosofias que conheci nos bancos da escola, e isso, no caso dos dois, em Português. Graças a eles, minha trajetória de estudante, que julgo nunca ter terminado, percorreu-se com um prazer que provavelmente não existiria sem eles.

No texto de Bento eu encontrava um contraponto aos de Porchat. Com Bento, eu deparava com uma concepção de reflexão filosófica antes ensaística do que sistemática, que parecia recusar a ideia de que a filosofia se define exclusivamente pela racionalidade clássica e que, por isso, atenuava em mim os resultados da poderosa força argumentativa presente nos artigos de Porchat e a concepção de Verdade que os fundamentava. Impressionava-me, ao mesmo tempo, o modo como Porchat mobilizara o argumento do “conflito das filosofias”, conjugando-o com os pressupostos filosóficos do assim chamado método estrutural de análise. A escrita fluente – diferente da de Bento, mas não menos cativante – ia desenvolvendo com clareza impressionante uma argumentação impecável, que concluía, sem inibições, pelo abandono da filosofia – um abandono profundamente filosófico, ao mesmo tempo racional e dramático. Contudo, nos artigos seguintes, tal exercício argumentativo se veria acompanhado do tom confessional, da ideia de filosofia como discurso em primeira pessoa, consciente de seus limites humanos e precários, mas que proporcionava um retorno àquela filosofia antes abandonada e agora repensada. Esses artigos de Porchat, agora eu sei, me encantavam porque dialogavam com a tradição mais remota da filosofia, adotando suas exigências mais características de racionalidade, ao mesmo tempo em que incorporavam a elas o elogio das verdades da vida de todos os homens, a chamada vida comum. Reunidos ao ensaio de Bento, eles me causaram, com o tempo, a impressão de que a filosofia, afinal, se vê necessariamente diante do desafio metafilosófico de pensar sobre si mesma. Sem o pretenderem, esses dois pensadores brasileiros me conduziram por esse caminho que, desajeitadamente, continuo tentando trilhar.


De certa forma, parte disso eu já intuía, sem ser capaz de formular, quando fiz aquela ligação sob um orelhão de esquina. Eu não estava ligando para um desconhecido, ao menos do ponto de vista filosófico. Tomei coragem e, atendida a ligação, imediatamente fui ao ponto: “professor, o senhor não me conhece, sou aluno da filosofia da USP e soube que o senhor está voltando ao Departamento. Gostaria de conversar sobre a possibilidade de uma pós-graduação”. Do outro lado a resposta veio imediata: “vamos então combinar um dia e horário para você vir até minha casa”. 

Essa receptividade me surpreendeu. Às vezes injustamente, associamos às pessoas, por causa do papel que desempenham, características que não possuem. Por alguma razão que hoje só posso entender como simples preconceito, imaginei que ouviria uma resposta evasiva, desinteressada. Dada a importância de Porchat na comunidade filosófica, eu pensava, talvez ele nem sequer queira me ouvir, por ser ocupado demais. Por isso custei mesmo a tomar coragem para ligar. Mas a resposta positiva me animou.

Porchat me recebeu em sua casa, no Alto de Pinheiros, e conversamos sobre meus planos de pós-graduação. Quando mencionei Platão, ele me disse que teria que pensar no assunto, porque seus interesses atuais estavam voltados para o ceticismo, antigo ou moderno – Sexto Empírico e Hume, principalmente. Disse-me também que pensasse na possibilidade de estudar Sexto Empírico, e assim encerramos nossa conversa. Depois de algum tempo, eu me convenci de que valeria a pena mudar meu tema e estudar o ceticismo de Sexto. Platão continuou em meu horizonte e nada se perdeu – muito ao contrário, tive o privilégio de aprender com Porchat a ler, escrever e pensar filosofia. 

Mais de trinta anos depois desse episódio que inicia minhas relações com meu grande mestre, relações que agora infelizmente se encerram, eu poderia elencar uma série de qualidades que nele encontrei, como docente, pesquisador, pensador original, e como ser humano, muitas das quais tomei como inspiração. Todas elas serão muito bem descritas e comentadas pelos colegas que aqui, neste espaço, darão seus depoimentos. Eu gostaria apenas de destacar uma delas: sua extraordinária generosidade com as pessoas. Porchat era muito querido pelos estudantes e colegas, porque lhes dava sempre o que tinha de melhor, suas aulas, seus textos, seu respeito e consideração. E o fazia porque nutria por todos um sentimento para o qual a única palavra que consigo encontrar é amor. Porchat não era um filósofo da vida comum de um ponto de vista meramente teórico, ele era e se via como mais um entre todos os homens, ele se reconhecia como parte de um todo chamado humanidade. Compreender esse fato nos ajuda a compreender tanto o homem quanto seu pensamento.

Um filósofo geralmente desenvolve seu pensamento no decorrer de um longo tempo e espera-se, olhando retrospectivamente para sua obra, que nela se percebam mudanças, reformulações e alterações. Com Porchat não foi diferente, mas eu me arriscaria a dizer que, ao longo de um trajeto tão rico de possibilidades, ele sempre esteve à procura da melhor forma de filosoficamente formular um conjunto de convicções que nunca abandonou, e que a passagem a seguir, de “Prefácio a uma filosofia”, me parece apresentar: “Tantos anos passados após a perda da fé, percebo que aqueles valores ainda se me impõem com força tenaz e que a eles não renunciei. Continuo a ansiar pela Verdade, tenho a paixão da Humanidade, acredito firmemente na Realidade das coisas e eventos da experiência cotidiana e tenho uma consciência brutal da finitude de nossa razão. Reconhecendo a gênese dessa minha postura, nem por isso me sinto obrigado a abandoná-la. Nenhum argumento jamais encontrei que me persuadisse a fazê-lo”.

Embora nosso filósofo vá reformular muita coisa em seu pensamento, acredito que o essencial dessa passagem continue expressando, até o fim de seu trajeto filosófico, alguns de seus aspectos centrais. Mas não é assim mesmo em filosofia? Não estamos, todo o tempo, procurando os melhores meios de justificar, a nós mesmos e aos outros, nossas mais íntimas convicções? Essas convicções, Porchat as pensou e viveu intensamente, para nosso benefício.

 

ANPOF 2017/2018