Homenagem a Porchat - Uma amizade filosófica

Prof. Dr. Bento Prado Neto

UFSCar

14/12/2017 • Coluna ANPOF

Em primeiro lugar, eu gostaria de agradecer o convite para contribuir para essa homenagem a Oswaldo Porchat – é um enorme prazer, e uma honra. Tenho, creio eu, uma dupla qualificação para tanto: de um lado, sou aluno e orientando de Porchat, de outro, sou filho do Bento, que foi um interlocutor privilegiado de Porchat. Como aluno e orientando, eu poderia testemunhar a enorme lista de qualidades de Porchat: o professor incomparável (um tanto severo, mas sempre extremamente cordial), o professor que, sem abrir mão da mais aguçada fineza historiográfica, abre espaço para – ou antes exige – a reflexão pessoal (cobrando, além disso, dos alunos o máximo de coerência e clareza argumentativas); o orientador exemplar, o orientador que não dá trégua ao orientando, ao mesmo tempo em que o estimula a pensar por conta própria... A lista de qualidades seria longa e, como lista, como mera lista, seria fastidiosa - e, por ser longa, eu acabaria me esquecendo de algumas no entanto importantes. Meus colegas desta homenagem percorreram esses temas, ao mesmo tempo em que enfocaram as várias facetas de Oswaldo Porchat, facetas que vão muito além do trabalho de ensino e orientação (sua produção como historiador da filosofia, como filósofo, seu papel crucial na organização institucional do trabalho filosófico no Brasil, etc, etc). Vou me ater a um aspecto em que Porchat foi particularmente fundamental para a minha formação, mas que creio ser igualmente relevante para todos.

Refiro-me à amizade entre Porchat e Bento – enquanto “amizade filosófica”, como uma vez caracterizou o Plínio – amizade que acabou definindo um pouco para mim as feições que se deveria atribuir à atividade filosófica. Por me faltar engenho e arte, não vou procurar oferecer um retrato bem acabado dessa amizade (seria um prato cheio para um bom retratista, dada a sua riqueza, interesse e também seus lados divertidos); vou apenas evocar um traço, que me marcou especialmente.

Oswaldo Porchat era a pessoa com quem o Bento mais gostava de conversar de filosofia – seu interlocutor privilegiado; e não creio ser desmentido se eu disser que a recíproca é verdadeira. Esse é o fato. Mas esse fato tem um aspecto, à primeira vista, paradoxal, aspecto que pode ser enunciado em uma frase: como podem duas cabeças tão diferentes uma da outra, e até mesmo, sob certos pontos de vista, diametralmente opostas encontrarem uma na outra a interlocução privilegiada? Dito numa frase, esse “paradoxo” tem todas as características de uma bobagem, então vou procurar me explicar um pouco melhor.

É claro, em primeiro lugar, que Porchat e Bento tiveram, fundamentalmente, a mesma formação filosófica, aprenderam as mesmas técnicas, compartilharam um mesmo sistema de referência básico. Não obstante, cada um deles explorou e desenvolveu essa formação comum em direções diametralmente opostas. O entusiasmo de Porchat – em um determinado momento de seu percurso – pela lógica matemática é certamente algo que Bento seria incapaz de compartilhar; para fazer a recíproca, podemos substituir “lógica matemática” por “Deleuze”, por exemplo, sem medo de errar. De certa forma, eles acabaram se inserindo em universos filosóficos (com temas, autores, procedimentos específicos) inteiramente diversos. É assim curioso que, apesar disso, ambos continuassem vendo um no outro, o parceiro filosófico dileto.

É claro, por outro lado, que ambos – cada um à sua maneira, com estilos inteiramente diversos – eram exímios argumentadores, adversários temíveis para quem pensa o interlocutor como um adversário. Nada mais natural, portanto, para cada um deles, que gostasse de conversar sobre filosofia com alguém com a mais sólida formação filosófica e com o mais perfeito domínio da arte de dialogar, independentemente das diferenças nas escolhas filosóficas. Mas não faltavam, para nenhum deles, outros interlocutores possíveis, com o mesmo apuro na formação filosófica, com a mais alta perícia argumentativa (e gosto pela coisa), e além disso com a aparente vantagem de uma maior proximidade no que diz respeito ao universo filosófico.

É claro, por fim, que, por sob a “amizade filosófica” havia a amizade tout-court, que costuma imprimir a regras gerais direções bastante particulares; pode-se mesmo levantar outras coincidências como relevantes. Tudo isso, creio eu, “explica” (entre aspas) parte do fenômeno, mas deixa escapar um aspecto essencial dessa interlocução privilegiada.

Esse aspecto que eu prezo tanto, creio que ele pode ser ilustrado por uma anedota contada pelo Porchat, que eu tomo a liberdade de citar extensamente (será a melhor parte de meu texto):

“Numa de nossas conversas do Chic Chá, ocorreu certa vez um fenômeno notável, único do gênero em toda a minha vida. Bento e eu tínhamos idéias opostas acerca de um determinado problema, sou incapaz de lembrar qual era ele. Discutimos longamente, procuramos compreender-nos mutuamente, conseguimos. E argumentamos cuidadosamente, ouvindo-nos e respeitando-nos, cada um em defesa de sua posição. Depois de algumas horas, percebi que não tinha mais como opor-me à sua argumentação, ela me persuadira. E confessei minha derrota. A grande surpresa foi ouvir Bento dizer-me, naquele mesmo momento, que era eu quem o tinha convencido, que ele se dava por vencido. Demos risada e trocamos de posição, ele assumiu a que eu defendera, eu assumi a sua. Estávamos novamente em conflito. Começamos a argumentar de novo, mas desistimos logo. Estávamos cansados e a situação era, certamente, esdrúxula e algo paradoxal. Não me lembro se voltamos ao assunto, numa conversa posterior. “

Mais uma vez, a anedota pode ser lida de modo inteiramente equivocado. O leitor apressado ou maldoso irá entender isso como prova de um exercício fútil (um exercício escolástico de disputatio): eles falam por falar, e trocam de opinião com essa facilidade justamente porque a verdade não interessa, mas apenas o vaidoso jogo da esgrima argumentativa; finda uma partida, é o outro que começa com as brancas e a brincadeira continua. Mas, obviamente, as posições foram trocadas com muita dificuldade (após algumas horas de debate com o Bento e com o Porchat), e de forma inesperada, não premeditada.

A situação era, por certo, “esdrúxula e algo paradoxal” na sincronia das duas confissões de “derrota”; mas cada uma dessas confissões já constituía, por si só, um fenômeno notável; de fato, quantas vezes, ao longo da nossa carreira, ouvimos ou proferimos a frase “eu acho que você tem razão” – a não ser como movimento estratégico em que se entregam os anéis para salvar os dedos, em que se perde uma batalha visando vencer a guerra?

O interesse dessa anedota ou dessa fábula, obviamente não é o de um exemplo de honestidade argumentativa (confessando abertamente a derrota), mas sim o de um exemplo da capacidade de ser convencido pelo interlocutor (não derrotado externamente pela força das palavras), que é inseparável de uma rara habilidade, que é a de procurar – e conseguir ! - entender o que o interlocutor diz. É essa característica do Porchat que sempre me impressionou muito: a capacidade – que nada tem de trivial - de ouvir o que o outro diz, de prestar atenção ao discurso do outro, de compreender o que o outro fala – mesmo que essa fala venha de um universo bastante distante do dele. Não era privilégio do Bento receber essa escuta atenta, como o podem testemunhar os alunos de Porchat, seus orientados ou simplesmente interlocutores, que sempre se beneficiaram também desse aspecto da excepcional inteligência desse personagem sob todos os aspectos admirável.

 

Nota: Este texto retoma minha participação numa mesa redonda dedicada ao Porchat num encontro da ANPOF em Campos do Jordão.