Intelectuais negras e o uso da interseccionalidade

Laíssa Ferreira

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unicamp

03/11/2021 • Coluna ANPOF

A escolha por me tornar uma mulher negra intelectual tem sua origem em um sentimento de incômodo com o modo como a realidade se apresenta e como enfrentamos essa realidade. Isso significa que não posso escolher ser apenas uma intelectual, me fechar em meu escritório e desenvolver análises que nada tem a ver com os problemas que enfrento no meu dia-a-dia. Acontece que ao escolher ocupar a posição de mulher negra intelectual, eu me vejo posicionada em um entre: de um lado uma sociedade acadêmica que se mostra indiferente à minha realidade e de outro uma comunidade negra que entende que o trabalho intelectual acadêmico não possui utilidade para os enfrentamentos da realidade. Posicionada entre dois mundos, me vejo muitas vezes isolada de ambos e de certo modo, ocupando um não-lugar. No entanto, assim como outras intelectuais negras - Angela Davis, Patricia Hill Collins, bell hooks, Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro -, percebo esse não-lugar como uma oportunidade para estabelecer pontes entre esses dois mundos que são entendidos como opostos.

Escolher ser uma intelectual negra está ligada à percepção de que usando as ferramentas disponíveis tanto no mundo acadêmico quanto no mundo ativista negro me possibilitam criar análises, desenvolver diagnósticos e proposições efetivas para o enfrentamento dos problemas da sociedade. No entanto, essa escolha e tentativa de estabelecer pontes me colocam em um lugar de isolamento e marginalidade nesses dois mundos, especialmente no mundo intelectual acadêmico.

Quando inserida na comunidade acadêmica, eu me vi presa em métodos e procedimentos que não me contemplavam. Eu conseguia me adaptar, mas meu objetivo inicial não poderia ser alcançado com aquilo que me apresentavam. De certa forma, isso me colocava em um dilema: ceder às exigências acadêmicas - que exigem a necessidade de afirmar e defender a minha humanidade e, mesmo assim, não ser reconhecida por meu trabalho - ou usar da minha experiência prática para criar um novo método que fosse significativo para mim. 

O mesmo acontece em relação à comunidade negra. Por existir um sentimento anti-intelectual acadêmico dentro da comunidade, pessoas como eu encontram dificuldades para estabelecerem relações com uma realidade heterogênea. A comunidade negra prefere intelectuais que se voltam para atividades políticas e com possibilidades de emancipação, que estão ali no seu dia-a-dia e, por isso, suspeitam daquelas intelectuais que não estão envolvidas nas práticas cotidianas da comunidade.

A realidade me impõe escolher me render a um desses campos: ou estar envolvida na comunidade negra ou envolvida na comunidade acadêmica. Ocorre que essas atividades, para uma intelectual negra, não são exclusivas. É justamente em uma tentativa de experimentar atuar sobre as coisas e reconhecer que o pensamento crítico pode ser usado a serviço da sobrevivência da minha comunidade que eu escolhi me tornar uma intelectual. É preciso, então, encontrar o caminho para estabelecer essas pontes.

Ora, esse caminho já vem sendo pavimentado por muitas intelectuais negras. Reconheço que os problemas que enfrento são outros, tendo em vista que há uma "certa" aceitação dessa nova metodologia na academia. As epistemologias feministas negras, que se tornaram um campo de estudo nas humanidades, são fruto da resistência e insurgência de minhas antecessoras. Elas articularam um novo método que fosse ligado à nossa realidade, que não nos confina e que carrega nossa bagagem cultural e ancestral. Esses novos saberes nos permitem ter percepções alternativas e práticas que deslocam saberes e poderes, que privilegiam o trabalho coletivo e contribuem para uma luta e resistência. Isso porque entendemos que o trabalho intelectual não está dissociado da política do cotidiano, ele capacita-nos para participar da vida em comunidade, pois, "o trabalho intelectual é uma parte necessária da luta pela libertação fundamental para os esforços de todas as pessoas oprimidas e/ou exploradas que passariam de objeto a sujeito que descolonizariam e libertariam suas mentes" (HOOKS, 1995, p.466). Nesse sentido, eu, como intelectual negra, me vejo lidando com ideias na intenção de transgredir fronteiras discursivas.

E é nessa tentativa de estabelecer pontes que, assim como minhas antecessoras fizeram, eu busco trazer minhas experiências e saberes práticos para o meu trabalho de interpretar a realidade. O problema enfrentado pelas mulheres negras de sofrerem mutuamente com opressões distintas como o racismo, sexismo e a exploração de classe é o que me mobiliza. Para tanto, enfrentar esse problema demanda um olhar diferenciado que metodologias tradicionais da academia não conseguem ter.

As metodologias tradicionais insistem em analisar as opressões individualmente, mas a prática cotidiana vivenciada por mulheres negras nos mostram que por vivenciarmos opressões simultâneas é preciso ter um olhar específico para as relações das opressões. Estamos mais capacitadas para analisar a condição híbrida de pessoas oprimidas por vivermos essa condição e por estarmos dispostas a criar novas metodologias que possibilitem essas análises. As epistemologias feministas negras são pensadas nesse intuito, formuladas por mulheres negras de diferentes origens; escrito e falado por mulheres negras e para mulheres negras, concebemos um tipo de pensamento que hoje chamamos de interseccionalidade, mas que já vinha sendo abordado por teóricas negras sem ser nomeado. Este conceito possibilita o reconhecimento da simultaneidade da opressão, de pensarmos os elos existentes entre elas, e é uma das contribuições mais importantes feitas por mulheres negras para o auxílio de práticas emancipatórias e análises acadêmicas. Oriundo da experiência, a interseccionalidade implica uma perspectiva alternativa para a organização social que seja de fato comprometida com a justiça social. Com o conceito de interseccionalidade as mulheres negras apropriam-se da agência, tornam-se sujeitas e usam sua posição para desenvolver saberes outros.

As mulheres negras intelectuais buscam trazer essa perspectiva interseccional para a academia e, diante de tantas demandas, as instituições acabam assimilando parte dessa percepção. No mundo acadêmico, a interseccionalidade passa a ser vista como uma ferramenta de investigação crítica e de práxis forjada por ideais de políticas emancipatórias. Ela se torna, portanto, uma abordagem crítica às formas analíticas tradicionais de produção de conhecimento e é, ao mesmo tempo, um instrumento de emancipação política.

Sabemos que este conceito carrega toda uma bagagem histórica da luta das mulheres negras e vem ganhando popularidade acadêmica. No entanto, seu significado originalmente proposto está exposto aos perigos do esvaziamento. Mas, na transição que fazemos de seu uso do mundo ativista negro para o mundo acadêmico sentimos uma perda acerca dessa história do conceito. O deslocamento da interseccionalidade do campo da ação para o campo intelectual demanda uma redefinição dos seus limites, ideias e campo simbólico em uma tentativa de se encaixar nesse novo ambiente. Contudo, ao invés de manter o seu projeto de justiça social, o projeto da interseccionalidade acabou se tornando diferente daquele que buscava transformar a própria academia.

Por essa expansão para a academia, limites simbólicos mais fluidos de "raça/classe/gênero" como um projeto de conhecimento que se forjou nos movimentos sociais encontraram, eles mesmos, disputando espaços e legitimidade na política acadêmica predominante. Especificamente, à medida em que a incorporação acadêmica ocorreu, estratégias e argumentos associados a estudos de raça/ classe/ gênero se deslocaram. (COLLINS, 2017, p.10).

 

A interseccionalidade parece ser a única ferramenta capaz de capturar os crescentes corpos interseccionais de ideias e práticas, mas seu uso constante raramente inclui seu histórico prático e se limita a referenciar o momento em que ele é admitido na academia, com sua nomeação em 1989 por Crenshaw. Acontece que Crenshaw não nos oferece um ponto de origem da interseccionalidade, mas uma amostra dos seus limites estruturais e simbólicos e um ethos de justiça social que nos possibilita melhor compreender os problemas sociais e pensar em ações efetivas. Ela nos fornece um entendimento da interseccionalidade como uma construção de justiça social associado ao histórico movimento de lutas feminista e antirracista. Contudo, seu uso na academia tem se mostrado cada vez mais distante dessa abordagem.

Em uma tentativa de buscar caminhos discursivos que possibilitem um olhar para o passado e resgata-lo, intelectuais negras afirmam que a interseccionalidade não pode ser simplesmente incorporada ao discurso acadêmico e ser utilizada livremente por aqueles que não possuem domínio acerca de um ponto de vista feminista negro. A interseccionalidade não pode ser usada como um conceito neutro, ela não pode se tornar uma ferramenta dissociada da prática. Seu uso deve evitar a produção de novos essencialismos. Sem sua ligação com as epistemologias femininas negras, ele acaba por apoiar contradições históricas marcadas pelas diferenças e silenciamentos de pontos de vista.

Sabemos que o conhecimento produzido por mulheres negras deve ser aprendido por todos os oprimidos, pois proporciona um conhecimento de fluxo entre teoria, metodologia e prática. No entanto, esse modismo acadêmico da interseccionalidade chega a questionar a agência da mulher negra. Acontece que "é da mulher negra o coração do conceito de interseccionalidade" (AKOTIRENE, 2019, p.24) e seu amplo uso exige das intelectuais negras, hoje, um resgate discursivo daquelas que têm sido excluídas do seu uso na academia.

O comprometimento em desmantelar as injustiças sociais de raça, classe e gênero estão no cerne dos pensamentos feministas negros. Logo, quando a interseccionalidade é usada como uma ferramenta dedicada apenas a descrever a verdade sem criticá-la ou reescrevê-la, ela perde o seu propósito e se afasta desse comprometimento com a justiça social e restringe o seu potencial emancipatório. Nesse sentido, nós, como mulheres negras intelectuais, devemos assumir esse compromisso de mostrar que a interseccionalidade não é uma mera categoria conceitual. Trata-se, antes de tudo, de uma perspectiva histórica de luta, de afetos, de encontros intergeracionais, de respeito e reconhecimento.

Isso significa que, agora, o meu trabalho como intelectual negra não é apenas o de estabelecer pontes entre mundo acadêmico e comunidade negra. Agora, é também o de evitar esse esvaziamento do conceito fazendo o resgate de uma valiosa história de luta que culminou na criação da interseccionalidade. A interseccionalidade é uma forma encontrada de unir academia e ativismos, por isso, não podemos deixar que sua aceitação na academia seja desvinculada à agência. O meu papel como intelectual negra é o de estabelecer pontes e mantê-las. É ser insurgência e resistência na academia e na vida em comunidade. Muitas vezes esse trabalho  nos leva ao confronto de duras realidades, mas é andando nesse entre que podemos servir de catalisador para a transformação de nossas consciências e de nossas vidas.                                                         

AKOTIRENE, Carla. O que e? interseccionalidade?. Belo Horizonte: Letramento; Justificando, 2018.              

COLLINS, Patricia Hill. Interseccionalidade; tradução Rane Souza. 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2021.

____________________. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento; tradução Jamille Pinheiro Dias. - 1. ed. - São Paulo: Boitempo, 2019.                                     

____________________. Se perdeu na traduc?a?o? Feminismo negro, interseccionalidade e poli?tica emancipato?ria. Para?grafo, v. 5, n. 1, p. 6-17, jun. 2017.                 

____________________. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 99-127, jan./abr. 2016.                     

CRENSHAW, Kimberle. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. The University of Chicago Legal Forum, v. 1989, p. 139-167, 1989.

HOOKS, bell. Intelectuais negras. Revista Estudos feministas. Nº2/95. vol.3. 1995.

WEST, Cornel. The dilemma of the black intellectual. In.: The Cornel West: Reader. Basic Civitas Books, 1999. p.302 - 315.

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