Maternidade e Filosofia: destino, dilema e revolução

Mitieli Seixas da Silva

Professora do Departamento de Filosofia da UFSM

22/06/2021 • Coluna ANPOF

Poucas semanas atrás, em um evento internacional de Filosofia, uma eminente filósofa contou que quando comunicou sua gravidez ao seu chefe, ouviu o seguinte: “Você precisa decidir se será uma mãe ou uma filósofa!”. São muitos os sentimentos e as questões que surgem a partir desse episódio, nem todos possíveis de serem colocados em palavras. Neste texto proponho considerar a maternidade, entrecruzando notas filosóficas com considerações acerca da materialidade expressa pelas condições da carreira docente no Brasil, para questionar a visão expressa acima segundo a qual a maternidade é um dilema.

No Aurélio, maternidade é definida como o “estado ou a qualidade de ser mãe”. E uma mãe é aquela que gerou, pariu ou, mesmo sem qualquer relação biológica, criou um filho. Em todos esses casos, a maternidade é uma condição daqueles indivíduos que, seja por identificação de gênero, seja por seu sexo, são mulheres. Este conceito, portanto, é diferente do conceito de parentalidade, pois enquanto o último tem um escopo mais amplo e aplica-se a qualquer um que tenha a reponsabilidade (moral, biológica, jurídica) de criar um filho, a maternidade é uma condição de indivíduos cujo sexo ou identificação de gênero limita sua ação pessoal, social e econômica às restrições de ser identificada como uma mulher.

A compreensão da maternidade como sendo a natureza das mulheres encontra sua expressão acabada na descrição da Sophia de Rousseau: “Não há nenhuma paridade entre os dois sexos quanto às consequências do sexo. O macho só é macho em certos momentos, a fêmea é fêmea durante a vida toda, ou, ao menos, durante a sua mocidade; tudo a leva sem cessar a seu sexo e, para bem desempenhar-lhe as funções [...] precisam cuidados durante a gravidez; repouso quando do parto; de vida fácil e sedentária para aleitar seus filhos; precisam, para bem os educar de paciência e doçura, um zelo, uma afeição que nada perturbe; só elas servem de ligação entre eles e os pais, só elas os fazem amá-los e lhes dão a confiança de considerá-los seus. Quanta ternura e cuidado não precisam para manter a união em toda a família!” (ROUSSEAU, 1995, p. 428)

Essa é a base teórica sobre a qual pensadores do XVIII e XIX irão construir a persona da mulher através da maternidade: uma existência idealizada, perfeita para sustentar teorias da divisão sexual do trabalho, conferindo às mulheres toda responsabilidade concernente ao cuidado dos filhos e à manutenção da família e, assim, circunscrevendo o domínio do feminino à vida privada no lar. E mesmo pensadoras como Mary Wollstonecraft não irão questionar a natureza maternal da mulher. Isso porque, embora discorde de Rousseau em aspectos cruciais, ela não questiona a premissa de que as mulheres são mais dispostas, por exemplo, ao cuidado das crianças. Ao contrário, sustenta que seu dever enquanto cidadãs (o segundo dever mais importante) é o de ser mães. Nós podemos compreender o tipo de interlocutor que Wollstonecraft tinha em mente e a necessidade retórica de aceitar algumas premissas de seus adversários para poder avançar em outros campos. A visão da maternidade como um destino natural, contudo, persistiu nos discursos até ao menos a virada do século XIX para o XX, quando mesmo as sufragistas incorporaram em sua defesa de direitos civis e políticos a ideia de que a maternidade é um dever natural da cidadã, defendendo o que ficou conhecido como maternalismo. Perspectiva ainda influente, por exemplo, em alguns desenvolvimentos da ética do cuidado.

Contra a essencialização da maternidade, Simone de Beauvoir declarou em seu O Segundo Sexo que a maternidade é uma das principais fontes de opressão das mulheres e Elisabeth Badinter foi uma das primeiras filósofas a sustentar a inexistência do instinto maternal ao defender que esse sentimento não é nem necessário nem universalmente distribuído entre nós. Com isso, abriu-se o caminho para a defesa de que instintos, sentimentos e experiências tradicionalmente ligados ao ser mulher não sejam compreendidos como fundados na natureza, mas, diferentemente, em práticas sociais e culturais. A chegada da pílula anticoncepcional e o avanço, especialmente nos países ricos, de legislações protetivas quanto aos direitos reprodutivos contribuíram para uma nova geração de mulheres que recusaram a maternidade como seu destino natural.

Ora, deixando de ser desígnio, um mundo antes interdito de formas variadas de realização pessoal parece aberto: educação, profissionalização, ascensão social e econômica, realização sexual em relações não binárias nem heteronormativas. Além disso, a própria escolha pela maternidade parece poder ser ressignificada a partir de outras categorias: maternidade tardia, adoção, maternidade solo. Por essa razão, algumas autoras do século XX identificaram a maternidade não mais como um destino, mas como um dilema. E este é o dilema para o qual a filósofa que referi acima foi “lembrada”. Mais do que uma experiência isolada, este é o dilema colocado, às vezes implícita, às vezes explicitamente, a toda mulher que escolhe a vida acadêmica, e não seria diferente com as filósofas. Mas por que mulheres precisam decidir se querem ser mães ou filósofas?

Ora, sabemos que a maternidade impacta negativamente a carreira das mulheres[1], especialmente nos ambientes acadêmicos[2]. Recentemente, o movimento Parent in Science[3] publicou duas pesquisas que retratam o cenário brasileiro. Na pesquisa de 2019, mostrou-se que apenas 14% das respondentes diziam ser possível trabalhar em casa, sendo que 21% admitiam apenas ser possível trabalhar quando as crianças dormiam (MACHADO et al, 2019, p. 39). Além disso, foi possível mensurar uma redução em publicações científicas das mães que dura em média até quatro anos após a chegada do filho, fenômeno que ocorre em todas as áreas do conhecimento. Por fim, quando perguntadas se a maternidade impactou sua carreira, 81% das mães responderam que sim (59% negativamente e 22% de modo extremamente negativo)[4]. Ano passado, repetindo a pesquisa, levando em conta marcadores de gênero e raça e avaliando o impacto da pandemia na carreira das pesquisadoras, foi possível chegar à seguinte conclusão: como esperado, a pandemia impactou a produção das mulheres (especialmente, negras e mulheres com filhos menores de 12 anos), movimento que não foi tão acentuado no grupo dos homens, especialmente os sem filhos[5]. O padrão negativo que foi percebido na carreira das docentes acentua-se quando se considera as pós-graduandas e as discentes de pós-graduação que são mães, o que me leva a considerar que as coisas são ainda piores para as graduandas.

Não temos – ainda – dados específicos para medir o impacto da maternidade na carreira das filósofas. Mas sabemos, de acordo com a profícua pesquisa da profa. Carolina Araújo, que as mulheres têm, em média, duas vezes e meia menos chances de atingir o ápice da carreira docente, isto é, de integrar os quadros como docentes permanentes em programas de pós-graduação (ARAÚJO, 2019). O quanto essa dificuldade resulta da consideração de que mulheres são mães é difícil de mensurar. Mas sabemos, novamente, que mães enfrentam vieses negativos (um muro inteiro deles, aliás) em suas carreiras acadêmicas, estereótipos que impactam não apenas o modo como seus pares enxergam sua capacidade produtiva, mas, principal e cruelmente, o modo como nós mesmas enxergamos nossas próprias carreiras e oportunidades[6].

De tudo que sabemos, temos a obrigação de perguntar como, enquanto comunidade, podemos agir para transformar a academia, e os departamentos de filosofia, em ambientes que não sejam punitivos para as mães. Para começar, acredito ser essencial não apresentarmos a maternidade pela esparrela de um dilema. Isso porque se, por um lado, esse suposto dilema só é uma realidade para algumas mulheres, por outro, mesmo no caso daquelas que podem adiar sua escolha pela maternidade, o que é o caso de muitas acadêmicas, essas escolhas não acontecem sem custos físicos e psicológicos.

Para terminar, acredito que há alternativas a serem exploradas e uma das mais frutíferas é aquela que aborda a maternidade como uma experiência revolucionária. Patricia Hill Collins apresenta essa ideia a partir da consideração de uma maternidade compartilhada, onde a comunidade, e não apenas a mãe, assume a responsabilidade pela criação dos filhos. Isso só é possível em um ambiente onde os filhos não são vistos como propriedade de seus pais, traço encontrado, por exemplo, em tradições africanas, e, portanto, algo que desafia o capitalismo em suas raízes – por isso, revolucionário (2005). Essa ideia muito me agrada: filhos não são propriedade, filhos são partilha. Como essa compreensão pode nos ajudar na tarefa de construir um ambiente acolhedor para mães? Quero responder essa pergunta discutindo rapidamente uma das muitas práticas envolvidas na maternidade.

A amamentação é frequentemente apresentada como um dilema individual entre, por um lado, os prazeres da maternidade e, por outro, seus custos. E ela é assim apresentada porque é fácil e conveniente cair em uma visão altamente romantizada dessa prática, de modo que as circunstâncias sociais e econômicas para sua realização sejam esquecidas. Mas, a amamentação não é um dilema, ela é uma prática social e, enquanto tal, a decisão, os riscos e as condições para seu sucesso deveriam ser compartilhados por todos aqueles que são responsáveis – diretos e indiretos – pelo bem-estar das crianças (os pais, a comunidade, as instituições, as empresas, as universidades, os governos etc.).

O rationale por trás dessa ideia é que apresentar a amamentação pela perspectiva de uma escolha individual implica em oprimir as mulheres. Essa opressão ocorre de diferentes modos: para mulheres que não têm as condições materiais que garantem que ela possa permanecer em casa ou amamentar em seu local de trabalho, significa que elas não têm, de fato, qualquer escolha; para mulheres que têm as condições materiais, dadas pelo Estado ou garantidas por arranjos familiares, permanecem os riscos, pagos individualmente, de baixar sua produtividade e de reforçar vieses acerca de seu comprometimento com o trabalho.

Assim, do mesmo modo que vejo ser necessário encarar a amamentação não apenas como uma decisão pessoal da mulher, proponho que consideremos a maternidade por seu viés revolucionário, isto é, como uma prática social, vai sem dizer, a ser valorizada, e que, enquanto tal, deve ser compartilhada, celebrada e suportada por todos os indivíduos e instituições, inclusive, pelas universidades. Apenas desse modo acredito ser possível caminharmos, para o conjunto das mulheres, em direção a um exercício da maternidade que considere as mulheres na completude de seu ser, que compartilhe leveza e não fardo, imaginação no lugar de dor e amor ao invés de culpa. Esse é um desafio para todos, e não é um desafio menor para nossa comunidade.

Referências:

ARAÚJO, Carolina. Quatorze anos de desigualdade: Mulheres na carreira acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017. Cadernos de Filosofia Alemã: Crítica e Modernidade, v. 24, n. 1 (2019).

COLLINS, Patricia Hill. Black women and Motherhood. In: HARDY, S.; WIEDMER, C. (Ed.). Motherhood and Space. New York: Palgrave Macmillan, 2005.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

MACHADO, Leticia Santos (et al.). Parent in Science: the impact of parenthood on the scientific career in Brazil. 2nd International Workshop on Gender Equality in Software Engineering (2019).

 


Por conta de um verbete que estou escrevendo, venho me ocupando das teorias filosóficas da maternidade e de sua implicação prática na carreira acadêmica (a ser publicado em 2022). Este texto é uma versão resumida, escrita especificamente para suscitar o debate na comunidade filosófica brasileira, sem referências e, por conta da limitação de espaço, sem indicações de práticas que visam a contornar as implicações negativas da maternidade em mães acadêmicas.

[1] O mais recente relatório da Consultoria McKinsey & Company aponta o quão crítico é o cenário para mães trabalhadoras no : https://womenintheworkplace.com/

[2] O relatório da Elsevier é didático e mostra como algumas causas da menor participação das mulheres na vida acadêmica estão diretamente relacionadas à maternidade: https://www.elsevier.com/__data/assets/pdf_file/0008/265661/ElsevierGenderReport_final_for-web.pdf

[3] https://www.parentinscience.com/

[4] A pesquisa pode ser encontrada aqui: https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_f53ac6eee19f454193a3ae5ef84682f4.pdf

[5] O relatório pode ser acessado aqui: https://327b604e-5cf4-492b-910b-e35e2bc67511.filesusr.com/ugd/0b341b_81cd8390d0f94bfd8fcd17ee6f29bc0e.pdf?index=true

[6] Aqui um interessante resumo sobre o “maternal wall bias”: https://www.sciencemag.org/careers/2019/04/working-mothers-face-wall-bias-there-are-ways-push-back

DO MESMO AUTOR

Especial Anpof 8M: 30 anos de desigualdade de gênero na filosofia acadêmica brasileira

Carolina Araujo

Professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

04/03/2024 • Coluna ANPOF