Neutralidade é um lugar que não existe

Carla Rodrigues

Professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e pesquisadora Faperj
Integrante do GT Filosofia e Gênero

25/08/2020 • Coluna ANPOF

Carla Rodrigues é professora de Ética no Departamento de Filosofia da UFRJ,

Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e bolsista de produtividade da Faperj.

 

Sou branca e fui criada como branca. Mais do que isso, fui educada para saber identificar os fenótipos das pessoas negras, de modo a estabelecer rigorosas distinções entre pessoas brancas, pessoas então chamadas de “mulatas” e pessoas negras. Cresci aprendendo que pessoas negras são sujas e que a cor preta estava associada ao nojo, ao abjeto. Na escola progressista em que estudei, havia apenas duas pessoas negras, ambas filhas de funcionários. Durante décadas, escutei a exaltação dos ancestrais portugueses e italianos, que nos legaram pele branca, cabelos lisos e, no meu caso, olhos azuis, joia rara na família e objeto de disputa como  signo da herança materna portuguesa ou da herança paterna italiana.

Fui ensinada a ser superior porque branca, embora a superioridade de uma mulher branca de família pequeno burguesa estivesse fundamentada na cor, não em privilégios de classe ou gênero. Quando analiso para a minha educação para ser racista, vejo retrospectivamente que as pessoas brancas da minha família de imigrantes pobres talvez precisassem afirmar o privilégio de cor para escapar da subalternidade justo por não terem o privilégio de classe.

Por isso, inclusive, além de racistas, eram também classistas e repetiam os estereótipos que o racismo usa ainda hoje: pessoas pretas e pobres são igualmente perigosas, eventualmente preguiçosas, embora as mulheres negras tenham sido sempre alocadas nos trabalhos braçais do cuidado da casa e no cuidado de crianças. Esta divisão marcou a minha infância. Quando criança, nunca entendi a divisão subjetiva entre não poder gostar de pessoas pretas e adorar a mulher preta que cuidava de mim quando minha mãe não estava.

Há muito tempo quero escrever sobre minha experiência pessoal de ter sido educada para ser racista e, portanto, ter chegado à vida adulta naturalizando a desigualdade racial. Do debate que se seguiu ao artigo de Lilia Schwarcz a respeito do novo vídeo da Beyoncé, foi o texto de Lia Vainer Schucman que me motivou a escrever. Isso porque considero o argumento dela irrefutável: “nossa racialidade está sendo marcada, algo que acontece há alguns séculos com negros e indígenas no Brasil, ou seja: é quando o grupo antecede o indivíduo (o que nomeamos de processo de racialização).” A história da minha educação para o racismo me diz que fui racializada como branca para ser racista. Já Schucman defende uma racialização que, como reconhecimento de que todas as pessoas são marcadas, poderia nos levar ao fim do racismo. Parece contraditório, eu sei, mas vamos lá.

Há muitos anos tenho trabalhado para desconstruir as camadas de racismo que me foram sobrepostas. Aqui, uso o verbo descontruir como foi proposto pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, a quem dediquei minhas pesquisas de mestrado e doutorado e com quem comecei a aprender que quem fala, o faz a partir de algum lugar. Isso porque um dos objetivos da desconstrução é a crítica à suposição da neutralidade dos discursos, que serve como anteparo a todas as premissas ocultas que os discursos de saber-poder contém.

Como mulher, experimentei inúmeras vezes – e infelizmente ainda experimento – a diferença de poder entre o discurso masculino de autoridade e o meu. Como pesquisadora, fui aprendendo a perceber e denunciar que esse discurso masculino obtém sua autoridade de uma suposição de neutralidade do saber. Daí para a leitura da filósofa Donna Haraway e seu clássico “Saberes localizados” foi um passo curto. No ensaio, Haraway desconstrói a suposição de neutralidade do discurso da ciência e confere às feministas a responsabilidade de produzir conhecimento como saber situado. É o que venho tentando fazer há algum tempo, tanto na minha escrita quanto no meu trabalho de orientadora de pesquisas acadêmicas que, muitas vezes, procuram a neutralidade em busca de autoridade, mesmo que para isso acabe abrindo mão da autoria do texto.

Neste processo, ainda em curso, precisei aprender que branco também é cor. Enxergar-se branca é enxergar-se marcada pela própria branquitude. É este aspecto que me mobiliza no debate sobre lugar de fala: a desconstrução da suposição de neutralidade de qualquer discurso. Quem continua pretendendo se ver como neutro ou neutra é quem, por acreditar que não tem cor, pode continuar oprimindo – seja as pessoas negras, seja as pessoas brancas subalternizadas – por uma suposta neutralidade do saber.

Não por acaso, o livro de Djamila Ribeiro (“O que é lugar de fala”, editora Letramento, 2017) tem como epígrafe trecho de um artigo de Lélia Gonzalez: “Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos) que neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa.”

Aqui posso fazer Djamila e Lélia conversarem com Achille Mbembe de “Crítica da razão negra” (N-1 Edições, 2019), em que ele divide a razão negra em dois momentos: o primeiro, o da consciência ocidental do negro, orientando pela interpelação do colonizador com perguntas como “quem é ele?; como o reconhecemos?; o que o diferencia de nós? poderá ele tornar-se nosso semelhante? como governá-lo e a que fins?”. No segundo momento, Mbembe percebe que as perguntas são as mesmas, a mudança está em quem as enuncia: “Quem sou eu?; serei eu, de verdade, quem dizem que eu sou?;  Será verdade que não sou nada além disto – minha aparência, aquilo que se diz de mim?; Qual o meu verdadeiro estado civil e histórico?”.

Quando me reconheço portadora de uma cor – branca – também posso enunciar estas perguntas, de tal modo a não precisar mais sustentar a posição de ter que repetir ao outro as perguntas do colonizador. Eu sou branca, e quanto a isso não há opção. Mas quanto a continuar sendo herdeira da violência da tradição colonizadora, acredito que haja escolha possível e que esta passa pelo desejo de cura da ferida colonial.

Retomo então minha experiência. Foi o racismo que me ensinou que sou branca. Fui marcada como branca a fim de que esta marcação funcionasse como signo de superioridade. Mas a mim hoje parece fácil perceber que a necessidade de marcação de superioridade só existe para aquele que se sente inferior, que se sabe fora do lugar de superioridade que almeja. Numa formação social marcada pela violência colonial, sobreviver é, entre tantas outras coisas, escapar do lugar de subalternidade.

Refletir sobre a experiência de ter sido marcada com a cor branca me ajudou a fazer a distinção que estou propondo aqui entre suposição de neutralidade do branco – a “branquitude” que não pretende se assumir como tal – e a admissão de que branco também é uma cor, uma marcação ou, para falar em termos interseccionais, um marcador que, se existe negativamente para a pessoa negra no racismo estrutural da sociedade brasileira, existe positivamente para a pessoa branca.

Com essa diferença, esboço uma hipótese: a maior rejeição à ideia de que todo discurso é situado, e que certos discursos estão autorizados por estarem situados a partir de um lugar de poder, e outros estão desautorizados por estarem situados fora desses lugares, a maior reação vem de quem ainda não vê a sua branquitude por se acreditar “neutra”. Para isso, é preciso negar que branco seja cor. É desse lugar de neutro que intelectuais, mesmos os/as mais respeitados/as, parecem não poder abrir mão. E aí caem na pior armadilha: “sou branco/a mas sou legal” (uma espécie de versão atualizada de “tenho até amigo gay”).

Fui racializada como branca porque fui educada para ser racista, o que me obrigou a assumir a minha cor e a carregar com ela o peso do racismo estrutural brasileiro. Se hoje penso, escrevo, pesquiso e ensino contra o racismo é por não suportar mais o sofrimento de viver num país em que pessoas negras são brutalmente excluídas, violentadas e exterminadas em nome da minha suposta superioridade branca. Esta é a cor da minha pele. Já o meu desejo tem sido destruir o racismo que me impôs uma suposição de superioridade branca na qual não me reconheço.

** O texto saiu originalmente no Le Monde Diplomatique no dia 19 de agosto.

DO MESMO AUTOR

Nota em defesa de Márcia Tiburi

Carla Rodrigues

Professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e pesquisadora Faperj
Integrante do GT Filosofia e Gênero

17/12/2021 • Coluna ANPOF