Nietzsche pragmatista: uma antiga novidade

27/08/2020 • Coluna ANPOF

André Luis Mota Itaparica - Professor da UFRB/PPGF-UFBA

Membro do Grupo de Estudos Nietzsche e do Poética Pragmática

 

“Sem dúvida, será uma interessante surpresa para muitos pragmatistas americanos e ingleses descobrir que Nietzsche antecipou todas as suas principais doutrinas”. Esta frase poderia estar num ensaio de pragmatistas contemporâneos afeitos ao filósofo alemão, como Richard Rorty ou José Crisóstomo de Souza. Mas ela provém de um artigo de 1909, “Friedrich Nietzsche, Antichrist, Superman, and Pragmatist”, escrito por John M. Warbeke para a Harvard Theological Review. De fato, o pragmatismo, como o advento de uma escola exclusivamente americana, é só mais um mito fundador que não resiste ao calor dos fatos históricos e à frieza dos conceitos. Em 1911, para dar outro exemplo, René Berthelot publicou Un Romantisme Utilitaire: Étude sur le Mouvement Pragmatiste, no qual Nietzsche desempenha um papel importantíssimo.

Parte dessa história, que apenas recentemente vem sendo aos poucos relembrada por autores como George Stack e Pietro Gori, passa por nomes como Ernst Mach e Ferdinand Schiller. No caso do primeiro, seu ceticismo metodológico e seu fenomenalismo se aproximam da teoria do conhecimento nietzschiana; já o segundo, leitor de Nietzsche, é o criador do “pragmatismo humanista” e, assim como Mach, interlocutor de William James. Numa carta para Mach, datada de 22 de dezembro de 1911, Hans Kleinpeter comenta as afinidades entre Nietzsche, Schiller, Mach e o próprio Kleinpeter: “O pragmatismo já está presente inteiramente em N[ietzsche]. Ele vê a verdade das categorias, da lógica, em sua utilidade para a promoção de nosso conhecimento e de nossa ação, em última análise, para a promoção do organismo”.

O livro que primeiro defendeu uma aproximação sistemática entre Nietzsche e a tradição anglo-saxônica em geral, e particularmente com o pragmatismo, foi Nietzsche as Philosopher, de Arthur Danto. Nesse livro, Danto realiza aproximações conceituais entre Nietzsche e o pragmatismo no âmbito da metafísica, da teoria do conhecimento e da filosofia da linguagem. Para Danto, Nietzsche é crítico da teoria da verdade como correspondência e defensor de uma teoria pragmatista da verdade, embora retome, em seu vocabulário, formulações provenientes da teoria da verdade como correspondência. Mas isso se explicaria pelo fato de que Nietzsche estaria elaborando uma nova teoria, e por isso ainda traria resquícios da anterior, do mesmo modo como ocorre em períodos de transições artísticas, quando inovações estilísticas convivem com elementos do estilo anterior. Essa teoria pragmatista de Nietzsche afirma que verdade é aquilo que funciona e promove o florescimento humano.

Danto desenvolve essa ideia a partir de textos mais tardios do filósofo, quando Nietzsche começa a elaborar sua derradeira teoria do conhecimento naturalista, na qual podemos efetivamente encontrar uma versão de uma teoria da verdade pragmatista. Mas, desde o texto de juventude “Verdade e mentira no sentido extramoral”, Nietzsche já apresentava vários posicionamentos que podemos atualmente chamar de pragmatistas, como o caráter prático, criativo, poiético e experimental do conhecimento humano. Podemos dizer que, assim como muitos intérpretes avaliam já haver uma “protogenealogia” nesse ensaio, já existiria nele também um pragmatismo em germe.

Escrito em 1873, “Verdade e mentira” é um ensaio que revela a ambiguidade que caracteriza a primeira fase da obra de Nietzsche (que engloba O Nascimento da Tragédia e as quatro Considerações Extemporâneas). Enquanto publicamente Nietzsche se apresentava como o defensor de uma metafísica estética de origem schopenhauer- wagneriana, ele mantinha, privativamente, uma vida secreta, naturalista e cientificamente informada. Suas leituras, cartas e anotações póstumas revelam um autor interessado em temas científicos, como o darwinismo e a fisiologia dos órgãos sensoriais. Em 1867, e portanto no início de seu contato com a metafísica de Schopenhauer, Nietzsche já estava inteiramente familiarizado com a crítica ao realismo metafísico, com a naturalização da filosofia transcendental de Kant, com o ficcionalismo no domínio da teoria do conhecimento e com a compreensão da filosofia prática como um âmbito ideal imaginado para a constituição de fins edificantes.

Em “Verdade e mentira”, a vertente cético-naturalista e a metafísico-romântica estão presentes de maneira mais evidente. Por essa razão, foi objeto tanto de leituras desconstrucionistas quanto metafísicas, a depender dos aspectos ressaltados. Uma leitura pragmatista, contudo, pode relacionar de forma produtiva os dois aspectos, ao estabelecer os laços que unem, de um lado, a defesa de uma concepção romântica das potencialidades criativas da arte, que tem como fim o florescimento humano, e, de outro, uma concepção do conhecimento como atividade prática, poiética e enraizada nas necessidades naturais da espécie. Essas duas correntes – o romantismo e uma teoria do conhecimento informada cientificamente – nunca deixaram de conviver na obra de Nietzsche, razão pela qual, como se sabe, ele previu, na juventude, numa espécie de profecia autorrealizável, que um dia ainda iria “parir centauros”.