O Debate sobre Filosofia Brasileira

Ronie Alexsandro Teles da Silveira

Universidade Federal do Sul da Bahia

10/02/2017 • Coluna ANPOF

O debate em andamento na “Coluna da ANPOF” sobre filosofia brasileira é tipicamente brasileiro. Nele se comprova nossa arraigada preferência pela teoria pura como forma de postular e resolver problemas. Pode parecer estranho que a filosofia possa ter outra perspectiva que não a puramente teórica, mas ela efetivamente tem.

Para utilizar uma metáfora que julgo esclarecedora, a discussão sobre filosofia brasileira se assemelha à tentativa de gramáticos em legislar sobre a língua, estabelecendo as condições de sua existência, os seus limites e o seu sentido. Com essa disposição metalinguística, se esquece que uma gramática é o resultado de um processo de consolidação a partir do uso da língua. Mais importante que isso é perceber que aquela discussão entre os gramáticos não enriquece em nada o uso da língua, mas certamente os coloca em uma posição hierárquica privilegiada.

Nesse debate sobre filosofia brasileira temos enfatizado ou o problema conceitual do que seria “nacional”, ou a alteração do cânone histórico em direção à América Latina e ao Brasil ou o desenvolvimento de um projeto filosófico que revele a especificidade brasileira dentro da civilização ocidental. Todas essas posições, embora diferentes, revelam uma mesma disposição teórica muito brasileira. Através delas estamos sendo traídos pelo próprio objeto de discussão: o Brasil que habita todos os filósofos brasileiros – queiramos ou não. Em último caso, é mesmo o Brasil quem está ditando o modo como temos discutido sobre filosofia brasileira: como uma teoria prévia à prática filosófica brasileira.


Essa propensão teórica da filosofia brasileira consiste em ocupar-se com os assuntos de uma perspectiva distanciada. “- Ora”, me dirão os colegas filósofos, “isso não é exatamente o que faz toda a filosofia?” Não exatamente, ou melhor, não com toda essa distância. A discussão sobre filosofia brasileira é o que de mais confortável pode fazer um filósofo brasileiro, justamente porque isso o mantém distante do Brasil. Mesmo no caso extremo em que se concluirá pela sua falta de sentido da filosofia brasileira, se mantém a necessidade de uma discussão prévia sobre a sua propriedade. E é justamente essa discussão prévia que manifesta nossa preferência pela teoria pura e substitui uma ocupação  efetiva com a filosofia brasileira.

Assim, seja qual for a resposta ao problema, na discussão em andamento a prática da filosofia brasileira parece depender do resultado de uma discussão anterior que estamos realizando. Observe que todo esse tratamento preliminar ainda não é a prática da própria filosofia brasileira, mas algo que a tornaria possível ou não – a depender da resposta. Então, podemos distinguir uma perspectiva teórica sobre a filosofia brasileira – que é representada por essa discussão - e uma perspectiva prática – totalmente ausente do debate, porque ela não é parte de uma discussão sobre filosofia brasileira. Ela é filosofia brasileira.

A prática de uma filosofia brasileira pode parecer uma atitude imprudente do ponto de vista filosófico. Afinal, trata-se de fazer algo antes mesmo de uma discussão prévia sobre sua necessidade, pertinência, limites etc. Porém, no caso brasileiro ou passamos à prática da filosofia brasileira ou permanecemos indefinidamente no plano teórico que é para onde sempre nos temos movido. Importante é notar que essa compulsão por uma postergação teórica não está vinculada à nossa condição de filósofos e sim à nossa condição de brasileiros.

Os filósofos gostam de se imaginar como seres racionais e livres. Porém, essa imagem sequer roça na situação efetiva de nossa condição de pensadores em um país colonizado e subdesenvolvido. A preferência por debater sobre filosofia brasileira – e (enquanto isso) não praticar filosofia brasileira – deve-se a que somos brasileiros e não filósofos. Não é por acaso que nós, os brasileiros, já fomos chamados por intérpretes nacionais de “um povo de sofistas e retóricos”, adeptos do “diletantismo”, das “divagações literárias”, do “verbalismo inoperante”, daquela “forma alienada da cultura que é a erudição” resultante de uma espécie de “infecção romântica” que tem nos atacado.

Embora não creia nisso, pode ser que estas interpretações estejam equivocadas. Seja como for, na pior das hipóteses a preferência por discutir sobre filosofia brasileira certamente não pode ser considerada ainda a própria filosofia brasileira. Assim como a discussão sobre a gramática não corresponde ao uso da língua. De minha parte, prefiro correr os riscos de certa imprudência em tentar fazer filosofia brasileira e deixar a cargo de outros, mais tarde, verificarem se o que foi feito é mesmo filosofia brasileira. Como filósofo prefiro deixar o trabalho historiográfico para os estudiosos do futuro, ao contrário de tentar antecipá-la. Tudo parece indicar que a dimensão ocupada pela discussão sobre filosofia brasileira é uma tentativa de constituir uma historiografia filosófica antecipada. “História do futuro” é uma expressão adequada para descrever sua pretensão.

A situação criada pelo debate sobre filosofia brasileira talvez revele o efeito de priorizarmos a história da filosofia no processo de formação de filósofos. Isso de tal forma que só conseguimos tratar de filosofia brasileira de um ponto de vista histórico, mesmo que isso envolva alguma forma de legislação sobre o futuro. Prefiro tentar ser um ator a me tornar um crítico antecipado de algo que está por ser feito ou que está se fazendo. Não parece razoável tentar antecipar o significado da prática da filosofia brasileira, senão como estratégia para não nos ocuparmos com ela. Entendo que o problema da filosofia brasileira é prático: só saberemos se ele é promissor depois de tentar. Debater sobre ele me parece uma forma tipicamente brasileira de protelação teórica e de afirmação do estado atual de irrelevância cultural da filosofia.

Isso não significa que não exista algo já realizado historicamente em termos de filosofia brasileira. Porém, isso é um assunto para a história da filosofia brasileira e não para a filosofia brasileira. Será que estamos novamente discutindo história da filosofia como se isso fosse filosofia?

A despeito de minha suspeita com relação ao debate sobre, parece-me haver um problema prático para que a filosofia brasileira se conecte efetivamente com o Brasil. Trata-se de um problema ligado à maneira de pensarmos filosoficamente o país.

A cultura brasileira é marcada pela inconsistência e pela desintegração dos seus elementos constituintes (tese que obviamente não posso expor adequadamente aqui). Por outro lado, a filosofia que se pratica no ocidente é uma forma de pensamento que procura soldar os fragmentos de culturas estilhaçadas. Essa disposição foi historicamente estabelecida em função do seu nascimento na Grécia Antiga: uma cultura que experimentava a fragmentação do politeísmo como trágica e dolorosa.

Então, temos de fato um problema a ser equacionado aqui. A filosofia que temos praticado no Brasil é majoritariamente ocidental. Quer dizer, ela possui esse compromisso básico com a unidade e com a integração dos diferentes aspectos de uma dada cultura. Mesmo que de maneira implícita essa propensão interna dirige nossas práticas intelectuais mais básicas. Porém, o Brasil é um país desintegrado. Então, temos uma prática intelectual que aponta da direção contrária daquilo que a nossa cultura valoriza – já que nunca experimentamos a desintegração como um problema efetivo, como algo a ser eliminado.

Dado esse contexto, parece que temos duas opções. Podemos optar por permanecer exercendo uma prática filosófica culturalmente irrelevante como o fazemos até agora. Embora isso pareça óbvio, é importante destacar que a filosofia que praticamos hoje nada diz de relevante para o país em que vivemos. A despeito de termos uma comunidade filosófica numerosa e estruturada, seu impacto na vida cultural do país é quase nulo. Ela não estabelece interlocução com o Brasil, senão de maneira marginal e minoritária. Trata-se de algo típico de nossa atual filosofia brasileira: uma prática intelectual feita de costas para o Brasil, uma teoria desconectada do que temos sido, uma filosofia de estufa: bonita, porém incapaz de sobreviver e se adaptar fora do seu ambiente acadêmico artificial. Observe que esse tipo de pensamento filosófico corresponde ao modo típico de dedicação puramente teórico de trabalho intelectual que marca a nossa “cultura literária” ou “razão ornamental”.

A segunda possibilidade é alterarmos nossa prática filosófica na direção da cultura brasileira. Isso significa conduzir a filosofia a se tornar uma reflexão da realidade brasileira – e não uma reflexão sobre a possibilidade de uma reflexão sobre ela, como é o caso do presente debate. Porém, esse giro temático implicará também a introdução de uma forma de pensamento muito diferente daquela que se firmou na tradição ocidental. Afinal, trata-se de uma prática intelectual que leva em consideração nossa tendência para a convivência sem tensões com a desintegração e com a fragmentação. Com isso, quero dizer que uma filosofia brasileira efetivamente conectada com a cultura brasileira só é possível em uma trilha alternativa àquilo que o ocidente vem realizando. Ela não poderá estar dirigida pelo espírito unificador grego, matriz da filosofia ocidental, sob pena de desfigurarmos aquilo que pensamos.

Com a atitude, que me parece equivocada, de pensar o Brasil a partir da filosofia existente apenas geraríamos uma versão ocidentalizante do Brasil: aquela que insiste monotonamente em indicar o que nos falta para sermos plenamente europeus. Ela seria, enfim, uma versão moralizante de filosofia, uma obra de reformadores de um mundo (brasileiro e latino americano) degradado, de condutores do povo em direção a um futuro melhor ou a um passado glorioso.

Certamente prefiro a opção de uma filosofia conectada com o Brasil a permanecer na irrelevância cultural atual. Porém, gostaria de chamar a atenção para a dimensão considerável de algumas das dificuldades que se avizinham dessa trilha. Por exemplo, quem se sentiria confortável em ter de lidar filosoficamente com um país que não é ocidental, cristão, capitalista e democrático? Essa me parece a tarefa de uma filosofia brasileira relevante para o que o Brasil tem sido.  O debate sobre ela é mais uma forma de adiamento de sua prática, uma maneira de permanecermos no conforto de um mundo filosófico belo e fechado sobre si mesmo – como em uma estufa. 

 

 

ANPOF (biênio 2017-2018)

09 de Fevereiro de 2017