O FILÓSOFO NA VIDA COTIDIANA - Homenagem ao professor Oswaldo Porchat

Prof. Dr. Plínio Junqueira Smith

04/12/2017 • Coluna ANPOF

Conheci Porchat quando eu tinha 15 anos, muito antes de saber que eu estudaria filosofia. Eu estava indo a pé de São Sebastião para a praia de Guaecá, onde ele tinha uma casa, porque, naquele momento, eu estava namorando a Patrícia, sua filha. Eu tinha ido de ônibus até São Sebastião e o taxi para Guaecá era muito caro. Decidi, então, ir a pé; um trajeto de mais de 9 kilômetros carregando uma mala. Outra pessoa que também estava no ônibus e ia para Boraceia (a praia anterior) foi comigo. Após deixá-lo em Boraceia e começar o caminho para Guaecá, um carro para no acostamento e, de um lado, a Pati desce. Ela me diz que estavam indo buscar a Lúcia S., que também chegava para passar uns dias na praia conosco e com um monte de outros amigos. Eu poderia tê-los esperado na rodoviária... Logo em seguida, do outro lado, sai o motorista para me cumprimentar: uma pessoa alta e com óculos de fundo de garrafa me estendeu a mão. Foi assim que conheci Porchat. Ou, pelo menos, é assim que me lembro.

Na praia, quando estávamos na varanda da casa, lembro-me de que Porchat veio contar o paradoxo do barbeiro: um barbeiro – o único da cidade - que faz a barba de todos (na cidade) que não fazem a própria barba. Ora, perguntava-nos Porchat, ele faz ou não faz a própria barba? Se sim, segue-se uma dificuldade, porque, se ele faz a própria barba, ele não pode fazer a própria barba, já que ele só faz a barba de quem não faz a própria barba; se, de outro lado, ele não faz a própria barba, ele faz a própria barba, porque ele faz a barba de quem não faz a própria barba. Qual a solução? Não sei por que, mas respondi que ele ia até a cidade vizinha fazer a sua barba. Naquela época, se bem me lembro, eu ainda não fazia barba... Mas eu já ia ouvindo Porchat falar de filosofia e contar histórias da UNICAMP.

Assim era Porchat: sempre procurava os mais jovens, gostava de conversar com eles, não se inibia para falar de suas coisas, aliava filosofia e praia. Diversas vezes, ele organizou encontros em Guaecá com seus orientandos, convidando uns 5 ou 6 por vez. Lembro-me de ter ido uma vez. Acho que eu já morava em Curitiba nessa época. Não somente discutíamos bastante filosofia, mas também aproveitávamos o sol, a praia e a natureza. A filosofia estava imersa no dia-a- dia. Porchat dizia que se tivesse mergulhado numa água gostosa em dias quentes como aqueles, Descartes jamais teria inferido o cogito; a seu ver, Descartes precisava ter mergulhado o seu cogito num mar como o nosso. E, então, caminhava uns passos e ia nadar.

Uma noite, andando pela praia lá pelas 2 da madrugada, com a lua crescente (ou minguante) e, portanto, sob luz moderada, mas suficiente, Porchat nos avisa: “cuidado, um buraco!”. De fato, uma criança cavara um buraco na areia e não o tapara, e alguns de nós estávamos quase caindo nele. Porchat sempre se colocou ao lado da jovem Trácia, que riu de Tales, quando este caiu num buraco, pois, enquanto contemplava as estrelas, não via o chão à sua frente; Porchat usava essa história para nos advertir para não cairmos no mesmo erro dos filósofos especulativos. Foi então que, para evitar não cair no buraco, Porchat deu um ou dois passos para o lado e... caiu em outro buraco! Não consegui me impedir de comentar: “Porchat, de que adianta evitar um buraco, se você, para não cair em um, cai em outro?” Eu me referia à sua aceitação de uma filosofia da visão comum do mundo e à sua noção de um “homem comum”, impregnadas de dogmatismo. Embora ele já tivesse abandonado a filosofia da visão comum do mundo em favor do neopirronismo, ele ainda se atinha às ideias de uma visão comum do mundo e de homem comum, as quais jamais abandonaria.

Esse seu gosto por estar entre os jovens foi uma constante em sua vida. Fazia parte de sua postura como professor. Um professor é, antes de tudo, uma pessoa dedicada às pessoas mais jovens, para ensinar-lhes o que sabe, para corrigir-lhes onde for preciso, para orientar-lhes na direção certa. Porchat me disse diversas vezes: uma pessoa inteligente sem orientação produz resultados medianos, mas, se tivesse sido bem orientada, produziria resultados muito bons; uma pessoa mediana bem orientada é capaz de produzir bons resultados, mas, se mal orientada, produzirá coisas fracas. Para ele, essa dedicação constante era fundamental para perpetuar a filosofia, para melhorar o cenário filosófico. E, fiel às suas ideias, ele sempre foi esse orientador firme, que procura dar a formação mais sólida possível a seus orientandos, ajudando-os a dar o melhor de si mesmos.

Durante sete anos, eu e Roberto Bolzani íamos semanalmente à sua casa, para os seminários de orientação. De férias, só fevereiro (quando Porchat ia para Guaecá) e duas semanas em julho. Lembro-me de, em janeiro, voltar da praia toda quinta só para os seminários em sua casa (eu os preparava na praia); uma vez, deixei de viajar para Itacaré com meu primo porque eu tinha de apresentar os seminários em janeiro... Lemos juntos: o Tratado e a primeira Investigação de Hume; os Princípios e os Três Diálogos, de Berkeley; os Acadêmicos, de Cícero; as Hipotiposes pirrônicas de Sexto Empírico; inúmeros artigos sobre o ceticismo. Passados sete anos, defendi meu doutorado, fui um ano para a UFSCar, com Bento, e depois para a UFPR, e Roberto se tornou professor da USP. Era chegado o momento de ter outros orientandos: Felipe Chaimovich, Luiz Eva, Tuxo, Marquinhos, Vitor, entre outros. Dada sua orientação muito exigente (que exigia dele um tempo enorme para seus orientandos), Porchat nunca orientava mais do que duas ou três pessoas ao mesmo tempo. Mas até o final de sua vida, ele sempre estava orientando alguém.

Porchat também se dedicava a seus alunos de modo geral. Ele dizia que gastava cerca de 30 horas semanais para preparar uma aula. 30 horas! E sobre um assunto que ele já sabia de cor e salteado! Ele se explicava assim: é que eu quero estar preparado para toda e qualquer pergunta que os alunos possam fazer. Quando ele me disse isso, eu ainda não era professor, mas eu só ia observando o seu exemplo para imitá-lo depois na medida das minhas forças. Ter tido Porchat como modelo certamente aprofundou em mim o gosto pela docência.

Não espanta que, diante de tamanha dedicação à formação de jovens filósofos, Porchat tenha publicado relativamente pouco. Não sobrava tanto tempo assim para a pesquisa. Mas é que sua docência e sua orientação estavam, de fato, inextricavelmente ligadas. Porchat não orientava senão sobre autores e temas nos quais estava trabalhando. Quando fui estudar com ele, propus estudar Platão, Leibniz ou Husserl; ele me respondeu que eu podia escolher entre Sexto Empírico, Hume e os positivistas lógicos. Fui para casa, li Hume e, na semana seguinte, respondi: quero estudar Hume. Roberto Bolzani, que também queria estudar Platão, foi estudar Sexto. Deixamos de estudar o autor preferido para que pudéssemos receber a formação que Porchat dava. Depois, Porchat orientou sobre outros autores que queria estudar: Montaigne, Locke... Seus cursos também versavam sobre autores e temas que ocupavam a sua reflexão filosófica.

Ficou famoso seu primeiro curso na pós, em que os alunos deviam apresentar textos de 2 ou 3 páginas de reflexão pessoal sobre um assunto predeterminado para discussão. Essa era a matéria prima da aula; ele não dava uma aula expositiva, mas ouvia o que os alunos tinham a dizer (e, se não tinham o que dizer, tinham que pensar arduamente para ter o que dizer...). Depois, como deu certo, ele repetiu esse curso algumas vezes. Esses cursos refletiam a mudança de seu pensamento sobre o ensino da filosofia e sobre o papel do professor de filosofia em sala de aula. A seu ver, o professor deveria estimular os alunos a pensarem criticamente por conta própria, e não inibi-los; em vez de brilhar, exibindo sua erudição, o professor deveria ajudar os alunos a desenvolverem suas capacidades intelectuais, sem jamais perderem a motivação e o impulso que os levou à filosofia. Porque Porchat era assim: procurava aplicar seriamente ao que fazia aquilo que pensava.

Não tenho dúvidas de que ele se via muito mais como professor do que como filósofo. Lembro-me quando, no final de um colóquio no Centro Cultural São Paulo, fomos jantar fora, ele, eu, os participantes e alguns alunos. Eu dei-lhe carona. No caminho, ele me disse algo que me surpreendeu. Ele me disse que, pela primeira vez na vida, aos 80 anos, ele sentira que tinha feito algo importante na filosofia. E me agradecia por ter organizado o colóquio. Quem conhece Porchat, conhece sua sinceridade e sua honestidade. Foi um momento em que eu percebi claramente também a sua modéstia. Nunca me passara pela cabeça que Porchat poderia não ter muita consciência da enorme importância de sua obra para a filosofia brasileira. De fato, ele não sabia julgar adequadamente o que ele tinha feito. Não é preciso lembrar aqui da máxima socrática para dizer que é muito difícil para qualquer um saber avaliar a si mesmo. O professor se foi, deixará muitas saudades, mas os discípulos e sua filosofia ainda permanecem.

 

ANPOF 2017/2018

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