O legado de Porchat

Prof. Dr. Paulo Faria

UFRGS

13/12/2017 • Coluna ANPOF

Foi a mais completa reversão de expectativas. Por muito tempo ficamos nos perguntando o que acontecera.


Corria o ano de 1982. Eu havia ingressado na primeira turma do recém-inaugurado Mestrado em Filosofia da UFRGS, e Porchat foi convidado a proferir a aula inaugural do novo programa.


Eram os anos da ‘promoção filosófica da visão comum do mundo’. Porchat ainda não encontrara a via de conciliação com o ceticismo que passaria a explorar a partir de ‘Sobre o que aparece’ (1991).


Sua aula magna teve a limpidez de uma épura. A história da filosofia é a história do conflito das filosofias. O reconhecimento, penosamente conquistado, da indecidibilidade desse conflito convida à suspensão do juízo, mas essa só se consuma na renúncia completa à filosofia, que abre caminho para a redescoberta da vida comum e, finalmente, para a promoção filosófica da visão comum do mundo.

 
Não estávamos – eu certamente não estava – preparados para isso. Naquele ano de 1982, eu dava os primeiros passos de um itinerário dogmático, que tomou a forma de um périplo pela filosofia da lógica de Wittgenstein do qual só emergiria sete anos mais tarde.


Nesse meio tempo, Porchat seguia em frente, caminhando sobre um fio de navalha. E era com algum sobressalto que eu acompanhava, à distância, seu percurso.

Quando cheguei ao doutorado, decidi que não podia mais seguir adiando o enfrentamento das perguntas que Porchat suscitava – e foi assim que o ceticismo ingressou em meu repertório temático, e passei a frequentar os encontros que, àquela altura, Plinio Smith promovia em Curitiba, e mais tarde os trabalhos do GT Ceticismo da ANPOF. Eu não me permitia mais empreender uma investigação filosófica na pendência de uma decisão sobre a natureza e legitimidade da própria filosofia.

Porchat foi membro da banca de minha tese de doutorado – e sua arguição, a mais longa e meticulosa que jamais me foi apresentada, deu-me o que pensar por muitos anos depois.


Nunca cheguei a abraçar o ceticismo, e nunca coincidi completamente com Porchat – mas a interlocução com ele tornou-se uma dimensão vital de minha vida intelectual. E, porque ele era Porchat, e eu era eu, essa interlocução tornou-se o pão de cada dia de uma amizade que os anos só fizeram aprofundar.

Na dor dessa perda que nada pode reparar, olho para trás e dou-me conta da magnitude do caminho percorrido. E o cenário que descortino é radicalmente diverso daquele que eu vislumbrava quando, naquele longínquo ano de 1982, caí das nuvens escutando Porchat pela primeira vez.

Nada mais é como antes, e é esse o legado que ele nos deixa. Se alguém falou por nós, ousou proclamar publicamente alguns de nossos mais bem-guardados segredos, foi Porchat. É isso que permite ler sua obra como “uma curta recapitulação da filogenia”, da breve história da filosofia no Brasil, uma história feita exclusivamente de começos. Essa obra admirável resume, exemplarmente, as dificuldades da instituição da filosofia entre nós.

Mas essa obra admirável também é, na radicalidade do esforço de começar de novo, o ponto de partida incontornável do que um dia, talvez, teremos o direito de chamar por esse nome tão corrompido, ‘a filosofia brasileira’.

De fato estamos, agora, um pouco mais próximos desse dia. Ao empreender o esforço de acertar contas com a formidável provocação que constitui a obra de Porchat, estamos começando a superar praticamente o estágio das preparações e dos prolegômenos que foram tudo o que tivemos além de “análise de texto”. Tal é, para tantos de nós, o sentido do itinerário exemplar daquele que não hesitamos em chamar nosso mestre – que tenhamos chegado a poder dizer, com o orgulho e a gratidão com que cumpre dizê-lo: ‘Grande mestre, aprendemos tua lição. Estamos prontos para dar o próximo passo’.

 

ANPOF 2017/2018