O nome da confusão

Amaro Fleck

Professor de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais

21/05/2019 • Coluna ANPOF

Por isso, em vez de insistir na mobilização da classe trabalhadora na porta das fábricas, os comunistas teriam passado a priorizar, em algum momento do século vinte, a infiltração de seus quadros em jornais, rádios e televisões; nas escolas e nas universidades; nas editoras e nos centros culturais – o que, de acordo com tal teoria da conspiração, de fato ocorreu. Dominando a formação da opinião, seria só uma questão de tempo para a tomada do poder e para a revolução global, assim como para a abolição da heteronormatividade. Tal ladainha foi formulada no começo dos anos 1990, em volta dos paleoconservadores norte-americanos, e contrabandeado para o Brasil pelo astrólogo-guru, sempre atento aos desejos de sua freguesia.

Para funcionar, uma teoria da conspiração precisa aglutinar uma miríade de posições conflitantes como se fosse a mesma. Assim, qualquer suposto progressismo – seja ele liberal, socialdemocrata, trabalhista ou socialista – é taxado de comunismo; precisa também dar uma consistência imaginária ao grupo que só aparece unido em suas projeções, tornando possível a articulação de uma imensa rede capaz de perseguir um objetivo ao longo de diversas gerações. O retrato final é cômico: um obscuro grupo de intelectuais emigrados liderando, por meio de seus escritos (somados aos de Gramsci e aos de Butler, conforme a conveniência), a subversão da cultura ocidental da qual eles são parte integrante, quatro ou cinco décadas depois de suas mortes.

A questão é: como comentar tal teoria? Caberia tentar demonstrar sua falsidade, explicando, por exemplo, que os frankfurtianos da teoria crítica estavam ocupados antes em analisar as tendências da sociedade contemporânea do que em organizar movimentos de subversão, que eles sempre mantiveram imensa distância em relação aos partidos comunistas, que eles perceberam que os trabalhadores foram integrados ao sistema capitalista e deixaram de oferecer resistência a ele? Este tipo de abordagem apresenta claras limitações. Um dos pressupostos de uma discussão proveitosa é a boa-fé dos interlocutores, o que está ausente nesta situação (não se trata, afinal, de uma interpretação confusa ou problemática de textos, mas da ausência de uma leitura e da conjectura de um conteúdo sobre algo que se desconhece). Outra é o respeito pelas evidências.

Mas algumas especulações podem não ser ociosas: por que a teoria crítica de matiz frankfurtiana foi escolhida como o alvo a ser perseguido, em vez de outras teorias? Por que é feito o vínculo entre o discurso anticomunista e o delírio homofóbico? Por que o apelo ao anticomunismo volta a encontrar eco depois da queda do muro e da cortina de ferro? Por que discursos conspiratórios ganham cada vez mais força, em pleno século XXI? Em suma, por que, justo agora, quando dispomos de ferramentas cada vez mais precisas para desvendar os mistérios da natureza, para ampliar e disseminar o conhecimento, estamos entrando em uma nova época de sombras e trevas?

Algumas hipóteses preliminares, por ordem de desimportância: a teoria crítica foi escolhida como alvo precisamente por lidar com a conexão entre as dimensões objetivas e subjetivas da dominação capitalista, mostrando a imbricação entre os processos econômicos e aqueles de subjetivação (logo, na formação da sexualidade). Assim, atacá-la permite defender, concomitantemente, a manutenção do sistema econômico e a preservação das normas sexuais tradicionais, em um momento em que elas se encontram em perigo: não por conta de alternativas que estariam ganhando força (algum comunismo redivivo ou novas formas de organização familiar), mas simplesmente porque estão deixando de funcionar (por um lado, frustração de todas as expectativas de crescimento econômico, precarização generalizada do trabalho, colapso climático; por outro, dificuldades cada vez maiores para as pessoas manterem relações duráveis em um mundo de fragmentação e ansiedade recordes, no qual as redes de solidariedade se diluem).

A percepção, ainda que pouco clara, de algo que se esvai sem dar espaço a novas formas de socialização pode estar por trás do surto conspiratório: incapaz de encontrar ordem numa situação que tende à anomia, e incapaz de lidar com um problema de tal monta, a saída possível é encontrar o culpado. Ainda que não dê para resolver, dá para punir. Como ele não existe, elege-se um bode expiatório. Perdeu o emprego, ou não consegue encontrar uma ocupação estável como aquelas que seu pai tinha na sua idade? Culpa dos comunistas. Em vez de carreira, um trabalho precário? Culpa dos globalistas. Uma relação não vingou? Culpa do feminismo. Não consegue formar a família almejada? Culpa do gayzismo que se espalha. O consumidor das teorias de conspiração é um frustrado. As teorias de conspiração, um consolo. Ela é o ópio do povo de uma nova era.

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