Olimpíada de Filosofia do Rio de Janeiro, uma viagem!

Lara Sayão

Profa. (NEFI/UERJ - SEEDUC/RJ) e GT Filosofar e Ensinar a Filosofar

Daniel Gaivota

Prof. (NEFI/UERJ - SEEDUC/RJ)

28/10/2021 • Coluna ANPOF

O que é uma olimpíada de filosofia? Pode a filosofia ser olímpica? Uma competição? Quais seus fundamentos, qual sua origem, a que se propõe, a quem interessa? Que contribuições pode trazer para o ensino de filosofia? O que é avaliado, mensurado? A retórica, a lógica, a estrutura dos textos? Os textos? Seria um jogo? O que estaria em jogo?

Entre algumas modalidades de olimpíadas de filosofia, a do Rio de Janeiro, que acontece desde 2013, é uma atividade educativa filosófica onde não há competição, mas colaboração na discussão de um tema. Então, por que o nome olimpíada? Em que essa atividade educativa se aproxima dos jogos olímpicos? Quais virtudes são fomentadas nesses encontros? São eles uma experiência filosófica?

Inspirados no pensamento do filósofo uruguaio Maurício Langón, professores e estudantes de todo o Estado do Rio se reúnem em torno de uma temática filosófica, a cada ano, com o objetivo de juntos, enfrentarem o problema filosófico em questão.  Em tempos nos quais persiste na educação a premiação dos melhores nos rankings universitários, nas qualificações, nas provas internacionais, numa perspectiva reducionista dos saberes e das possiblidades de invenção, onde muitas vezes são premiadas e reconhecidas as reproduções que mantém as diferenças educacionais e sociais, essa atividade educativa filosófica vem experimentando modos de propor experiências de pensamento filosófico. 

A cada início de ano, a partir da demanda percebida nas aulas, é lançado um tema e, em cada escola, estudantes e professores estudam, discutem e elaboram textos, filmes e apresentações artísticas. Ao final do ano, encontram-se para rodas de conversa, oficinas e debates sobre a produção textual e audiovisual trazida pelos próprios estudantes, a partir dos estudos realizados nas unidades escolares. Nas olimpíadas de filosofia, encontram-se para oferecer ao outro o melhor de si para o diálogo filosófico. Assim, o espírito olímpico persiste: não o desejo de vencer o outro, não o desejo subjetivo de ser o número 1, mas o esforço coletivo de aprimorar um gesto, de levar o potencial humano ao limite e superá-lo: quão alto pode um ser humano saltar? Quão rápido pode correr? E, na filosofia: quão longe, rápido, baixo, profundo pode chegar o pensamento? Até onde podemos desenvolver, juntos, a sutileza e a beleza do gesto de pensar? 

Aventurar-se aí é, por si só, uma atividade filosófica: questionadora, intrigante, desafiadora, perturbadora para todos os envolvidos, talvez, até, de modo especial, para os professores, pois são mais fortemente deslocados de seus espaços confortáveis de formação e de atuação para estar num movimento junto a outros, de outros lugares de formação e atuação sem protagonizarem e conduzirem. Numa encruzilhada que alarga as gramáticas porque convoca ao desconforto das ruas que se cruzam, dos muitos caminhos que se encontram para contestar rumos marcados e fazer caminhar por vias desconhecidas, alargando as formas de compreensão e de pensamento sobre o que seja o filosofar e a filosofia, no exercício do caminhar juntos, ouvindo os parceiros de viagem.

Desde seu início, o grupo de professores do Rio optou pelo espírito colaborativo e pelo fomento do encontro-acontecimento numa atitude de abertura para o que pode se dar no encontro. As atividades que acontecem nos encontros das olimpíadas do Rio consistem em momentos de fomento do pensamento a partir de reflexões propostas, breves provocações sobre a temática escolhida, feitas por convidados que podem ser professores, pensadores, cientistas, poetas, pessoas comuns. Sua atividade principal é a formação de comunidades de diálogo entre os jovens, os protagonistas das olimpíadas. Todas as propostas anteriores às comunidades de diálogo consistem em provocações sobre o tema geral que têm como objetivo estimular o diálogo entre os jovens. Ao final do encontro, é prevista uma partilha sobre o que as comunidades dialogaram com o grande grupo, traduzidas em expressões artísticas, músicas ou comunicações. Enquanto os estudantes estão em comunidades de diálogo, os professores também se encontram para a partilha sobre a prática de ensino de filosofia ou para participarem de alguma oficina. 

Outra escolha das olimpíadas do Rio foi pelo caráter itinerante, viajante. Em detrimento da opção por uma “sede”, a cada ano o encontro faz um exercício nomádico de deslocar-se para um lugar novo. Isso faz com que não só as pessoas precisem se deslocar geograficamente, mas também que o próprio sentido das olimpíadas, a própria experiência do encontro desloque-se: não é o mesmo encontrar-se na praia e na montanha, no interior e na capital, longe de casa e perto de casa. Assim, não se trata somente de uma relação estudantes-tema, como poderia ser o caso de uma olimpíada de filosofia mais “formal” ou mais parecida com as olimpíadas propedêuticas e escolares. Nas olimpíadas de filosofia do Rio, há dois elementos a mais que fazem dessa experiência de pensamento exponencialmente intensa: o tempo e o espaço.

Ao deslocar-se para um novo território, é preciso aos estudantes e professores pensarem de outra maneira, ou pensarem com outros sotaques. Não existe preparação para o desconhecido, e por isso, a experiência geo-filosófica das olimpíadas de filosofia sempre opera um encontro radical com a diferença e com o inesperado. O território outro faz com que essa experiência de estrangeiridade que acontece nos próprios corpos contagie também o tema – percebemos que não sabíamos tão bem assim o que é a felicidade ou o amor –, contagie a relação com os colegas e, finalmente, contagie a própria filosofia. Some essa experiência de deslocamento a uma imersão de dois ou três dias dormindo e comendo juntos (ou seja, fazendo filosofia à maneira da viagem, com o corpo, com as mãos, com a boca). As olimpíadas de filosofia inventam uma temporalidade difusa, um tempo que não é muito nem pouco, em que há inúmeros perigos (o imprevisível é sempre perigoso) mas que ao mesmo tempo garante a segurança de que tudo vai ficar bem no fim. Abre espaço para o improviso. Que tipo de pensamento pode brotar das fendas desse espaço-tempo?

As olimpíadas de filosofia do Rio, como uma invenção coletiva, estão sendo, num devir educação, num devir filosofia, em caminho, uma experiência. É uma experiência filosófica sobre educação filosófica, porque faz pensar, mas também faz pensar sobre o fazer pensar. E faz isso no entre professores, estudantes, leituras, viagens, cultura, artes, lugares, vida. É um encontro entre pessoas que se arriscam a sair para ver o que acontece quando se colocam entre outras para pensar junto. É filosófica porque formou uma roda e convidou os pensamentos para gingar e construir sentidos para estar ali, para pensar educação, para pensar espaços, para pensar conceitos e enfrentar juntos questões comuns.

Porque deixar as ideias e os meninos e meninas correrem soltos é transgressor, é subversivo e tem que acontecer hoje, nas praças públicas, para afirmar a vida, a comunidade e os anseios de professoras e professores de filosofia por uma práxis fortalecida no coletivo. As olimpíadas de filosofia do Rio representam um posicionamento político desses professores e estudantes ao ocuparem os espaços públicos das cidades para fazer algo diferente, convidando a prestar atenção numa dimensão do mundo que nem sempre é percebida nas práticas individualizadas da educação.

Ao buscar fortalecer a potência do pensamento solidário, popular, fermental e original nas comunidades de diálogo, as olimpíadas do Rio tentam fortalecer também a percepção dos sujeitos como agentes e de sua própria reflexão como parte essencial da comunidade, como afirmou o estudante Marllon (2017), ao dizer que depois da experiência das olimpíadas de filosofia, nunca mais pensou sem respeitar as suas próprias ideias. Não se trata de um encontro para afirmar o eu, para fortalecer as subjetividades, e é justamente por isso que é possível aos estudantes, professores e a todas as pessoas que participam da experiência se observarem como forças na realidade, como movimentos, fluxos, que afetam a realidade e são afetadas por ela de volta. Ao voltar a filosofia para o mundo – que é seu movimento inaugural e mais bonito – somos capazes de nos compreender como parte deste mundo. Perceber nossas palavras e ideias e observar o lugar delas na trama de pensamento que se cria quando nos pomos juntos a pensar.

O que é uma olimpíada de filosofia é difícil responder. E é por isso mesmo que suspeitamos que ela seja intimamente, intensamente filosófica. É por apostar a cada ano num trajeto desconhecido, num mapa invisível, guiados sem bússola, mas na convicção de que todas as pessoas têm igual capacidade de pensar filosoficamente que afirmamos essa ideia de filosofia – não fundamentada em nenhum tratado, mas nessa forma de teoria que se faz com as mãos –: popular, inquieta, materialista, macumbeira, coletiva, amorosa, pobre, vagabunda, vadia...

Lara Sayão é professora de filosofia da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, doutora em Filosofia da Educação (NEFI-UERJ), autora do livro “Olimpíadas de Filosofia do Rio de Janeiro, o pensamento na roda (2020).

Daniel Gaivota é professor de filosofia da secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, doutorando em Filosofia da Educação (NEFI-UERJ), autor do livro Poética do deslocamento – nomadismo, narrativa e deslocamento na Escola-viagem (2017).