Os primeiros sons do futuro

Rafael Haddock-Lobo

Professor do Departamento de Filosofia e
do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGF-UFRJ

09/11/2016 • Coluna ANPOF

Talvez uma das maiores dificuldades para a filosofia seja pensar seu tempo. Poucos filósofos conseguiram realizar isso de modo efetivamente crítico, isto é, sem cair no afã histórico nem no tom profético ou apocalíptico. Isso parece se dar devido à dificuldade que os pensadores têm de se posicionarem de uma maneira de fato reflexiva com relação ao que se pode chamar de “novidade”, ou, como prefiro, diante de sua atualidade.

Tendo à sua frente o que lhe é atual, o filósofo (e aqui gostaria de sublinhar o que parece ser o mais corrente na academia, e certamente não apenas na nossa), parece adotar uma das duas posições opostas que aqui elenco: a primeira, menos comum, seria algo próximo a um deslumbramento com aquilo que lhe parece novo, um entusiasmo acrítico tal como o de uma criança frente a um brinquedo que desejava há tempos; a segunda, certamente a mais fácil de se encontrar, seria uma espécie de rabugice reativa, um resmungo detonador como o de um vizinho velho que faz questão de acabar com a festa dos mais jovens, tão logo dê o horário de silêncio.

Contudo, se o clamor pelo novo parece facilmente descartável, como coisa de criança ou de juventude, o posicionamento mais “maduro” não me parece ser menos complicado. Enquanto este retira qualquer relevância daquilo que surge, e portanto destitui diversas questões de seu tempo de sua dignidade filosófica, aquele, ao menos, parece ter a vantagem de tematizar de modo positivo o que lhe é atual. E ainda mais, é interessante notar que aquela postura mais usual parece esconder duas motivações distintas, cada uma problemática à sua maneira. Há aquele que, antipático ao novo por ter se recrudescido em suas suas certezas e não ser capaz de ter outro modo de relação com o que lhe aparece, rejeita-o simplesmente pelo fato de ser novo e por suas velhas estruturas não conseguirem lidar com tais acontecimentos; há contudo um outro que se aproxima daquele que Zaratustra chamara de “monge na lua”, aquele que, como “um cão com a língua de fora”, deseja o mundo às avessas, no modo do ressentimento, e que tem sua recusa ao novo motivada por um misto de inveja e amargura, exatamente por não ser capaz de lidar com seu próprio mundo.

Tais motivações para a rejeição da atualidade (querendo acreditar que na academia as estruturas enferrujadas sejam mais comuns do que a hipocrisia ressentida) são facilmente encontradas não apenas quando se trata de questões teóricas ou epistemológicas, como também de éticas e políticas. Contudo, parece-me tão problemático quanto quando tais motivações reincidem no âmbito da estética. E em todas essas parece que a situação chega a seu ponto máximo de aversão quando o problema envolve o que se convencionou chamar de “o virtual” (ainda que se possa objetar que o que é característico disto que hoje se chama de virtualidade nada mais é do que uma hipérbole daquilo que Platão já criticava em sua rejeição à escrita e do que causou tamanho estranhamento a Freud, ao falar no telefone com seu filho). No entanto, sem querer adentrar à questão do gosto (pois concordo plenamente com Hegel quando este, em sua estética, relembra que de gustibus non est disputandum), gostaria aqui de apresentar um exemplo do que considero ser um desafio atual que “o virtual”impõe à estética.

Não sendo de modo algum um especialista em filosofia da arte, embora assumindo-me publicamente como alguém que gostaria de ter a coragem de tratar de tais questões, para mim complicadíssimas, de modo mais sistemático, e correndo aqui o risco de cair naquele primeiro erro por mim anunciado, pretendo aqui apenas trazer um problema, no intuito de contribuir ao campo de discussões em torno da arte. Tais reflexões surgiram nas aulas da disciplina de estética que estou ministrando, sobretudo diante de diversos debates em torno de como importantes teorias estéticas do século XX parecem não dar conta de certas manifestações artísticas atuais, por estarem ainda presas ou ao triângulo arte – artista – obra ou à problemática noção de criação (supondo sempre, obviamente, a figura do criador).

Muitos devem se lembrar do frenesi que causou a gravação da canção e do videoclipe de “Unforgettable”, em 1991, por Natalie Cole, quando a voz de seu falecido pai, Nat King Cole, fôra remasterizada e mixada para simular um dueto na música. Ou, mais recentemente, em 2014, quando mixagens de voz e edições de imagem não pareciam mais impressionar, recordemos da “aparição” (e não poderia haver um termo mais condizente) de Michael Jackson, à época falecido há cinco anos, apresentando-se “ao vivo” no Billboard Music Awards. O furor que causara a recriação digital do Rei do Pop certamente superou em muito o impacto que tivera a tecnologia dos anos 90. Não obstante, acredito que ambos os eventos ainda seguem a mesma (tecno)lógica: a edição dos sons e imagens que um artista produziu em sua vida e sua reprodução depois de sua morte. Para além disso, os nossos dias nos colocam uma questão ainda mais radical: como seria possível a criação de sons e imagens que, de certo modo, prescindisse da presença de um artista, ou ao menos de um só artista? Em outros termos, como seria possível pensar para além da presença, viva ou não, do artista e talvez, até mesmo, da obra?

Creio que a resposta já se encontre à nossa disposição desde o final da década de 2000, quando, em 22 de agosto de 2009, Hatsune Miku realiza seu primeiro show ao vivo, na cidade de Saitama, região de Tóquio, Japão. Mas o que ou quem é Hatsune Miku? A resposta técnica é simples: trata-se de uma vocaloide dublada por um sintetizador de voz que se apresenta como uma projeção 3D, ou seja, um holograma de uma animação com voz sintetizada por um programa de computador. Talvez isso responda à questão “o que” é Hatsune Miku, mas ainda restaria saber “quem” é ela. Miku é um ídolo adolescente, um fenômeno que vem nos últimos anos ultrapassando os limites do J, K & C Pop (termos usados para designar a música pop japonesa, coreana e chinesa) e se tornando febre entre os teenagers do mundo todo. Trata-se de uma menina de 16 anos, 1,58 m e 42 kg, com cabelos azuis, sempre usando maria-chiquinha e figurinos típicos das cantoras pop, mas com uma longa lista de sucessos, incluindo clipes e performances ao vivo, com bailarinos e banda.

Diante do fenômeno Hatsune, a primeira objeção à postulação de uma análise filosófica seria dizer, seja pela rabugice estrutural ou pelo invejosa incompreensão, “isso não é arte” e, assim, desautorizar um debate estético em torno do problema. Mas creio que, a despeito daqueles que ainda insistem em rebaixar os fenômenos de massa e desqualificar a indústria cultural devido a um padrão elitista de gosto, ainda que travestido de racionalidade, a simples retirada de cena de um problema tão genuinamente filosófico como esse seria mais do que conservadorismo, seria absoluta ignorância (caso tais termos não sejam redundantes). Hatsune Miku talvez seja uma das provocações mais radicais que nosso tempo nos impõe para pensarmos “o que (sic) é arte”.

Uma outra possível tentativa, a meu ver também absurdamente equivocada, de se resolver a questão (isto é, acabar com a discussão), seria a de simplesmente indicar quem é “o verdadeiro artista” por detrás da menina. Alguns diriam que é Saki Fujita, a dubladora cuja voz é sintetizada; outros que é aquele que justamente sintetiza a voz; outros que é o criador do anime; outros, o programador; e tantos outros até se concluir que, enfim, Hatsune Miku é um trabalho de equipe: alguns artistas teriam se juntado e criado coletivamente um holograma de uma animação com voz sintetizada. Para mim, contudo, essa simples solução parece muito pobre para analisar tal “fenômeno”, sobretudo se levarmos em conta que, ao pensarmos em qualquer artista na atualidade, qualquer criação seria sempre coletiva, envolvendo compositor, intérprete, arranjador, coreógrafo, etc.; e isso sem falar na quantidade de artistas que recorrem, em seus shows, a projeções, play backs e vozes sintetizadas. Contudo, é a adolescente japonesa que multidões vão assistir ao irem às suas apresentações, é ela, a menina, o ídolo, no sentido mais radical do termo, com o mesmo furor que, em minha adolescência, eu aguardava ansiosamente o próximo show da Madonna.

Na realidade, parece-me que pensar a arte de Hatsune Miku é um desafio inevitável àqueles que se interessam por estética e mesmo pela filosofia da cultura. E, na tentativa de apenas lançar esse desafio a meus colegas estetas, lembraria que o nome de batismo da pequena diva, “Miku”, vem da palavra japonesa que significa “futuro”, e que seu sobrenome, “Hatsune”, quer dizer “primeiro (hatsu) som (ne)”. É claro que a menina não é a primeira e nem será a última a soar essa provocação que vem do porvir, mas esses tantos sons, que incluem Miku, Michael, Nat King e muitos outros, são fonte valiosa de questionamento para os paradigmas estéticos (e, por extensão, aos filosóficos), que se sustentam monumentalmente sobre a precária égide do presente e da presença.

09 de Novembro de 2016.

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