Quando a cor importa: o racismo estrutural na esquerda Érico Andrade

26/05/2020 • Coluna ANPOF

Érico Andrade

 

Para João Pedro Matos Pinto

Os fascistas nunca esconderam o seu desejo pela punição da população negra. A famosa frase “bandido bom é bandido morto” tem endereço e cor. Esse texto não é para eles. Quem se coloca no lugar de julgar quem deve morrer e viver já abandonou qualquer resíduo disso que ainda chamamos de forma vaga de humanidade. O que pretendo entender é porque o campo da esquerda negligenciou por tanto tempo a questão da segurança pública responsável por chacinar vários negros e negras por todo país.

A minha hipótese não se pavimenta pelo caminho mais óbvio. De fato, os campos progressistas sempre entenderam, com razão, que a violência está relacionada à desigualdade econômica. Que era preciso colocar no centro da discussão sobre a violência o combate à desigualdade. Meu ponto, contudo, não é esse. A questão que levanto, e que é inspirada no questionamento do deputado Federal do PSOL RJ Marcelo Freixo, é por que entregamos à direita o monopólio sobre a discussão a respeito da atuação da polícia. Eu tenho um palpite. Racismo.

À exceção de Marielle Franco (negra, também do PSOL RJ e morta por esta razão) e de alguns movimentos de base, nunca nos preocupamos seriamente nem com os policiais nem com as suas vítimas igualmente negras na sua maioria. Os policiais sempre fizeram de modo institucionalizado o serviço sujo das elites. Mas, eles mesmos morrem da própria violência que o Estado fomenta. A mesma polícia que mata morre. Claro que mata mais do que morre, mas os corpos mortos, este é o ponto, são majoritariamente negros. Seja qual for o lado.

A conivência com a morte de milhares de negros, vidas sequestradas pela estupidez da proibição da comercialização das drogas, é o esteio. A desculpa tácita para o extermínio, incorporada em parte pelas próprias comunidades carentes, é que aquelas vidas enveredaram pelo crime sobretudo ligado ao tráfico. Aqui cabe, na forma de ironia, a expressão do presidente. E daí? Isso justifica que elas sejam dizimadas? O Estado brasileiro acredita que sim.

O passo nessa direção foi se autorizar a polícia a matar mesmo sem um confronto. À medida que as palavras institucionais escasseavam diante dessas mortes, a escalada da polícia avançava para dentro das comunidades. O passo seguinte foi transformar as favelas em territórios de guerra, negligenciando o trabalho de inteligência da polícia para colocar o contingente de policiais negros na linha de frente do extermínio dos negros sem farda ou até mesmo com fardas da escola. Os efeitos colaterais da guerra não poderiam ser eles mesmos mais racistas. A bala perdida sempre encontra o corpo negro.

Achille Mbembe alerta para o fato de que a categoria “negro” remete a um vínculo de dominação. Neste sentido, o corpo negro é duplamente submetido ao Estado. Por um lado, porque é vigiado e morto. Por outro, porque a atuação do Estado enquanto polícia reconhece no corpo negro a sua cota de sacrifício.

Quando crianças negras com uniforme escolar ou mesmo dentro de casa são mortas começamos a pensar como retiramos dos negros o futuro. Para ser preciso lhe delegamos um futuro: a morte. Um futuro que pouco difere da lógica da colonização. Se não são propriamente mais escravos, são colonizados pelas mesmas formas de opressão. O destino comum dos policiais e moradores de favela ainda encontra na morte o seu principal ponto em comum.


E o que fizemos? Deixamos para a direita a pauta da segurança pública. E na nossa omissão deixamos as vidas negras à sua própria sorte. Reproduzimos, repito, pela omissão, o racismo estrutural que dá às vidas negras o mesmo destino que elas tinham na colonização: a morte precoce ou a insegurança sem fim.

Para que toda negritude seja emancipada é preciso tomar a segurança pública da mão dos fascistas, mas antes disso é preciso entender que as mesmas causas que concorrem para a morte de meninos como João Pedro são as que nos fizeram por muito tempo ineptos para uma discussão mais radical sobre a segurança pública: o racismo. É ele quem mata aqueles para os quais na história do Brasil nunca foi facultado plenamente o direito de existir.

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Érico Andrade é filósofo, psicanalista em formação e Professor UFPE