Racismo e o cânone filosófico

Leonardo Rennó

Pós-doutorando e professor colaborador (IFCH/Unicamp)

10/11/2021 • Coluna ANPOF

Assim como a história do pensamento ocidental é marcada por um processo deliberado e progressivo de silenciamento e ocultação das mulheres, assim também essa mesma história se constituiu por uma não menos violenta marcha de exclusão dos grupos humanos considerados ξ?νοι (xenoi), estranhos, estrangeiros, insólitos. Uma ampla categorização da diferença humana foi pouco a pouco forjada no interior do discurso filosófico para legitimar o milagre grego e seus ditos herdeiros: bárbaros e selvagens são apenas os vocábulos mais recorrentes de uma longa tradição de opressões epistêmicas que culmina com a cunhagem do famigerado termo raça e com o mito, ainda hoje operante, sobre a territorialidade da filosofia.

A compreensão desse processo de instituição de uma mentalidade racista nos desafia porque, de um lado, não lidamos aqui com uma exclusiva diferença externa entre grupos humanos distintos, entre gregos e persas ou entre alemães e todos os outros povos, por exemplo. Quando a Grécia aparece como a terra da Verdade, não são todos os gregos que nascem de suas entranhas dignos de amá-la. Mesmo no interior do grupo dominante, proprietário do saber filosófico, há aqueles capazes de gerá-lo, nutri-lo, preservá-lo e há aqueles outros aos quais o conhecimento das essências (a metafísica) se encontra impedido, esses devem, pois, obedecer. É no mito hesiódico das idades dos seres humanos que Platão encontra recurso para uma justificação exclusivamente social dessa diferença interna, revelando em simultâneo uma aliança com a ideia de povos distintos para controle administrativo dos saberes: a filosofia é um fenômeno heleno e prerrogativa de uma elite. Eis o logro que um Sócrates, constrangido, não se furtou a propor em A República [414b-415d] para uma administração eficiente dos negócios da polis, isto é, da política.

De outro lado, a natureza externa e interna dessas diferenças não se limita a uma localização horizontal do que difere, nós deste lado e eles lá do outro. Não enfrentamos aqui apenas fronteiras e muros. O esforço do pensamento euro ocidental em diferenciar e se diferenciar também traz inscrito em sua violência uma verticalização da variedade de modos de vida e de pensamento humanos. Se a expressão plena do logos ou da razão só pode ocorrer em um ou uns poucos povos privilegiados é porque há algo neles que lhes faculta a via régia, os grupos restantes tropeçando todos em diferentes etapas da ascensão humana, cuja estratificação a inteligência helena também buscou explicar. São bárbaros, Aristóteles declara impassível na Política, vivendo em condição análoga à escravidão, “donde o dito dos poetas, é natural que os gregos comandem os bárbaros” [1252b5-9]. Desde o pronunciamento da autoridade aristotélica variou-se os sentidos desse natural no comando milenar que a mentalidade euro orientada se outorgou sobre os povos taxados de periféricos. Porém, quer seja biológico, religioso ou social, os sentidos coincidem na ideia básica de um determinismo inescapável, adequado tanto à predestinação de um povo quanto à danação de todos os outros.

No entanto, os exemplos de Platão e de Aristóteles não são paradigmáticos por erigirem no ocidente as duas bases incontornáveis sobre os quais toda orientação racista de pensamento se encontrará fundada, diferenciação e hierarquização. Platão e Aristóteles são modelares pela razão contrária, porque a filosofia que eles criaram não se resume a uma simples justificação teórica da tradição helênica. Que Platão exclua de sua noção de justiça qualquer orientação meritocrática, base do racismo moderno, e que a educação da virtude possa superar, segundo Aristóteles, o império das tendências naturais (Julie Ward e Tommy Lott (orgs.), Philosophers on Race, Blackwell Publishing, 2002, pp. 10 e 30 resp.), essas diferentes vias ou pontos de fuga no interior desses dois sistemas clássicos de pensamento apenas revelam que a história intelectual do ocidente europeu, e do cânone filosófico que herdamos, foi formada mediante escolhas conscientes e não por submissão cega a um télos irresistível. Assim o quis a comunidade de filósofos (no masculino plural).

É nessa encruzilhada que interessa interrogar o conceito de raça e o procedimento racista que a alegação, frequente, de anacronismo escamoteia. Os conceitos gregos de γ?νος (genos) e ?θνος (ethnos) não atendem por completo ao que revela a etimologia do termo raça, que emerge no século XV derivado do árabe raz (cabeça, líder, origem) e do latim radix (raiz) (Christian Geulen, Geschichte des Rassismus, C. H. Beck, 2014, p. 14). Verdade. Mas também é certo que a relação entre conceito e palavra não é de identidade plena. Com frequência acontece de uma certa concepção pairar imprecisa no campo das práticas (não circunscrita ao domínio do puramente pensável), aqui e ali diversamente enunciada, até a sua fixação lexical num conceito filosófico. E mesmo aqui há grande diversidade. É por isso que a história intelectual do ocidente europeu pode ser narrada a partir dos sucessivos empregos do termo: às quatro ou cinco raças humanas marcadas pela cor da pele (brancos, negros etc.), a um povo em particular (judeus e ciganos), a uma orientação sexual (os homossexuais). A lista é grande e as várias acepções que nela encontramos do conceito moderno de raça sumarizam, por cristalização, os aspectos mais letais do impulso de diferenciação que também (mas não só) caracterizou o pensamento antigo. Sob essa perspectiva, o desbravamento das ideias e seu polimento de que se incumbe o ofício da filosofia também resultou no policiamento sobre o que pode ser pensado e sobre o que deve ser silenciado. É essa repressão que pratica quem enuncia a modernidade do termo raça e do racismo que lhe é ínsito, se com isso se desobriga de investigar as pistas ostensivas deixadas pelas práticas opressivas, todas informadas teoricamente, contra tudo que difere no demorado processo de constituição da mentalidade euro orientada.

Desde a manobra de Sócrates a ideia de que as diferenças se exprimem numa hierarquia infalível de competências inscritas na essência humana foi historicamente condicionada pelos discursos filosófico, religioso, científico (Stephen Gould, A Falsa Medida do Homem, Martins Fontes, 1991), e por fim, pelo discurso político após as duas declarações da Unesco que rejeitaram o valor científico das pesquisas raciais (UNESCO, Le Racisme devant la Science. 2a Ed., 1973). Em larga medida, o cânone filosófico se constituiu nessa esteira, ora com protagonismo (entre os Antigos, durante o Século das Luzes e na primeira metade do século XX), ora como coadjuvante (durante o medievalismo e no século XIX). A fileira dos autores que auxiliaram, a contrapelo ou não, na sedimentação do mito racial é extensa (Ashley Montagu, Mans’s Most Dangerous Myth: The Fallacy of Race, 4a Ed., World Publishing Company, 1964). Nesse andamento cuidou-se de não desautorizar as prerrogativas da razão universal e de suas inequívocas expressões mundanas: inteligência, linguagem articulada, estrutura de parentesco cis hétero patrilinear, pele branca. Todos os saberes periféricos e suas autoras e autores que desafiaram o figurino da metafísica foram sistematicamente reprimidos quer mediante conversão deles num inofensivo quadro panóptico da diversidade humana, algo como um cabinet de curiosidades, quer mediante esquecimento resoluto. Anton Wilhelm Amo na Prússia setecentista, Anténor Firmin no Haiti oitocentista e Sueli Carneiro nos dias de hoje são a prova desse oblívio.

Diante das exclusões que o discurso filosófico insiste em atualizar apenas uma outra série, de inclusões, pode remediar e oxalá superar a persistência do racismo institucional e teórico, em especial nas nossas universidades. Certamente a necessária revisão do cânone não deve ser inquisitorial, mas suficientemente abrangente para tratar com o mesmo rigor e profundidade os temas clássicos e os até há pouco considerados marginais, por exemplo, o conceito aristotélico de lugar natural em sua epistemologia e em sua política, a conversão rousseauísta do escravagismo numa “metáfora da condição humana na sociedade europeia moderna” (Achille Mbembe, Crítica da Razão Negra, N-1 edições, 2018), o cosmopolitismo kantiano à prova de sua famigerada teoria racial. Tópicos como esses, tradicionalmente periféricos, não devem ser de modo algum exclusivos do debate especializado. Muito pelo contrário, eles se encontram no centro de uma formação filosófica responsável e sensível à natureza multicultural da sociedade humana e, em grande medida, ecoam nos espaços universitários as demandas de um corpo discente não menos diverso. Em tempos de evidente retrocesso acadêmico, tão hostil à diversidade cultural como os nossos, o apoio a políticas públicas de acesso e permanência dos grupos discentes mais ameaçados socioeconomicamente é estratégico não só para a manutenção e ampliação da pluralidade de vozes no interior do espaço universitário, mas em especial para o arejamento e a renovação do cânone filosófico num dos setores mais conservadores dos saberes institucionalizados.

Uma segunda linha de inclusão capaz de fazer frente ao racismo vigente no cânone filosófico se refere à ampliação propriamente dita da literatura consagrada. Não há nenhuma boa razão para que não acolhamos como parte do patrimônio filosófico da humanidade, além das filosofias produzidas por mulheres, os sistemas de pensamento criados em outras paragens, de matrizes não europeias (UNESCO, Philosophy Manual: A South-South Perspective, 2014)[1]. A filosofia africana e a asiática, em particular a indiana, ainda aguardam o convite-autorização da comunidade filosófica brasileira. Da mesma maneira, não é menos filosoficamente relevante o esforço colossal para denunciar o infundado do racismo eurocêntrico, como encontramos nos estudos de feminismo negro (Angela Davis, Sueli Carneiro), decoloniais (Aimé Césaire), pós-coloniais (Edward Said, Frantz Fanon e Gayatri Spivak), subalternos (Ranajit Guha), ameríndios (Davi Kopenawa e Ailton Krenak) e de especismo e direitos animais (Peter Singer). Mesmo aqui ainda oscilamos entre encontrá-los discutidos em outros departamentos universitários ou, novamente, sob o domínio de uma literatura ultra especializada, inacessível portanto. A solução não só é possível como francamente viável. É preciso ver, contudo, se de fato a queremos. Isto é, se finalmente resistiremos ao canto sirênico da filosofia ocidental que desde os gregos vem forjando nossas lentes racistas.

 


[1] Acessível no sítio: Philosophy Manual: A South-South Perspective | Intercultural Dialogue (unesco.org)

DO MESMO AUTOR

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Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

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