Sobre golpes de Estado

Marilena Chaui

11/10/2016 • Coluna ANPOF

Nos Pensamentos metafísicos, Espinosa recomenda que, numa investigação, comecemos pela prima significatio das palavras, isto é, seu primeiro sentido, consagrado por seu uso costumeiro, por que, na origem, elas possuem função denotativa, e somente depois, ao serem apropriadas pelos letrados adquirem sentido conotativo, como nas metáforas, metonímias, sinédoques e outras figuras de linguagem. Se aceitarmos essa recomendação, ao empregar a palavra golpe convém buscarmos nos dicionários seu primeiro sentido. Assim, por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa de Laudelino Freire registra: 1. pancada com instrumento cortante ou contundente; 2. ferimento, ferida, brecha feita com instrumento cortante ou contundente; 3. acontecimento funesto inesperado; infortúnio; desgraça; 4. crise; 5. trama. Por sua vez, o Dicionário Houaiss registra os mesmos significados, mas acrescenta: “ato pelo qual uma pessoa, utilizando-se de práticas ardilosas, obtém proveitos indevidos; estratagema, ardil, trama, manobra desleal (...) ataque acintoso por meio de palavras, injúria, insulto”. Passando da denotação à conotação, os dicionários registram, entre vários sentidos figurados, “golpe de Estado”. Laudelino Freire registra: 1. ato violento a que um governo recorre para sustentar o poder; 2, trama pela qual indivíduos, por meios violentos, derrubam o governo estabelecido. E Houaiss: 1. tomada inesperada do poder governamental pela força sem participação do povo; 2. ato pelo qual um governo tenta manter-se no poder pela força, além do tempo devido”. Nessa perspectiva, compreende-se que muitos, à direita e à esquerda, cientistas políticos e filósofos, partidos políticos, incluindo o PT, afirmem que não houve um golpe de Estado no Brasil em 2016, pois tudo se passou segundo a legalidade posta pela Constituição, não houve uso da força nem mudança do regime (não se passou da democracia para a ditadura) e houve manifestação do povo em favor dessa ação.

Examinemos, porém, os procedimentos empregados para obter o resultado pretendido. Na medida em que não houve crime de responsabilidade pública por parte da Presidenta Dilma, os procedimentos empregados para promover seu impedimento pertencem à definição denotativa de golpe como trama, ardil, estratagema, manobra desleal, busca indevida de proveitos próprios e uso de palavras acintosas e injuriosas contra a pessoa de Dilma Roussef. Em outros termos, a Lei foi usada para pisotear o

Direito. Estamos, pois, perante o núcleo da palavra golpe como violência, desgraça, ferida e crise.

Mais importante: examinemos se, de fato, não há mudança de regime.

Em primeiro lugar, estamos perante a desinstitucionalização da república. Na medida em que o pilar da forma republicana é a autonomia dos três poderes, vemos que esta se encontra rompida, por um lado, pela maneira como o poder judiciário tem interferido nas ações e decisões dos outros dois poderes e sobretudo por sua presença disseminada e preponderante nas cidades por meio dos juízes de primeira instância, procuradores e policiais, que atuam sobre a população segundo seu próprio arbítrio, sem prestar contas às instâncias superiores. Também foi notória a interferência do poder executivo interino sobre o poder legislativo para a compra ou barganha de votos do Senado para garantir o impedimento da presidenta. Podemos não estar perante uma ditadura, mas podemos perceber claramente que não estamos diante de uma verdadeira república.

Em segundo lugar, e muito mais grave, estamos diante da desconstrução da democracia. Esta, como sabemos, não se define apenas pela concepção liberal, que a reduz a um regime político baseado na idéia de liberdades civis, organizado em partidos políticos e que se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais. A marca da democracia, porém, é outra: a criação de direitos e a garantia de seu exercício. O governo interino retoma a política neoliberal, que se define pelo encolhimento do espaço público dos direitos e o alargamento do espaço privado dos interesses de mercado, além de ser a imposição de um programa que foi recusado pela maioria da sociedade brasileira em quatro eleições seguidas. Qual a situação dos três direitos que definem a democracia?

Que se passa com o direito à igualdade? Está em vias de destruição, como indicam as medidas tomadas pelo governo interino e as anunciadas por ele (como a PEC 241) e os 55 projetos de lei trazidos ao Congresso pela bancada do Boi, da Bala e da Bíblia, que selam a recusa da igualdade econômica, social, racial, sexual, religiosa, fundada nos direitos econômicos, sociais e culturais conquistados nos últimos 15 anos graças, de um lado, a políticas de erradicação da miséria e de inclusão por meio de transferência de renda, pela ampliação dos sistemas públicos de saúde e educação e, de outro lado, pela criação das secretarias de ações afirmativas.

Que se passa com o direito à liberdade? Está sendo pisoteada, em primeiro lugar, pela supressão da Secretaria de Direitos Humanos e sua substituição pela Secretaria de

Segurança Nacional, sob o comando de um general; em segundo lugar, pelo recurso ininterrupto às força policiais para reprimir movimentos populares e sociais de contestação e de reivindicação, anunciando o emprego futuro da lei anti-terrorismo contra a população.

Que se passa com a participação? Embora em toda parte surjam coletivos de luta, resistência e reivindicação, sua ação não tem potência suficiente para intervir como um contra-poder social de controle, ficalização e regulação do poder governamental, a prova disso estando no fato de que o governo interino governa por meio de decretos. Além disso, em termos da sociedade como um todo, a participação tornou-se quase impossível porque há o monopólio da informação pelos meios de comunicação, que não apenas desinformam, mas produzem ininterruptamente falsas informações.

Finalmente, a questão da soberania. A política externa do governo interino, abandonando a política externa ativa e altiva dos governos Lula e Dilma, quebrou o BRISCS, o Mercosul e outros organismos de unificação continental, assim como as relações com países africanos de língua portuguesa, restaurando a geopolítica que recoloca o país submisso à esfera de poder e influência dos Estados Unidos, do Banco Mundial, do FMI e do sistema financeiro global.

Nestas circunstâncias, como não falar em golpe de Estado, tanto no sentido denotativo quanto conotativo da palavra golpe?

DO MESMO AUTOR

A ética da política

Marilena Chaui

11/10/2016 • Coluna ANPOF