Um cético em busca da verdade

Michel Ghins

Professor Emérito da Universidade Católica de Louvain
Professor no Departamento de Filosofia da UNICAMP de 1983 a 1991
Membro do CLE desde 1993

06/02/2018 • Coluna ANPOF

Pegadas sobre a praia se apagam pouco a pouco à medida que se aproximam da linha branca e longínqua das ondas. O céu é rutilante, vermelho e claro ao mesmo tempo. Desse crepúsculo incandescente – ou seria da aurora? –, destaca-se, nítido, um nome: Oswaldo Porchat.

A capa de Rumo ao ceticismo oferece-nos uma viva evocação do itinerário filosófico de Porchat, partindo do “homem comum” ao qual ele se identifica inicialmente para progredir na via do conhecimento. Reside aí um paradoxo, pois ele era manifestamente dotado de qualidades humanas e intelectuais fora do comum? Sem dúvida, mas esse paradoxo é apenas aparente, pois o philósophos deve, em primeiro lugar, ter a sabedoria de reconhecer que ele é um homem semelhante aos demais, com suas crenças que lhe permitem orientar-se e agir na vida ordinária.

Com um passo seguro, os pés firmemente plantados no chão, Porchat o cético caminhou apaixonadamente em busca do fogo luminoso da Verdade, a despeito de crises pessoais contida na radicalidade de um tal itinerário e desenvolvida por ele em alguns de seus escritos. Profundamente crente em sua primeira juventude, Porchat foi levado, depois de um exame rigoroso, à conclusão de que os pontos centrais do cristianismo não poderiam ser demonstrados. Nisso, os cristãos certamente o acompanham, o que não implica que a fé seja contrária à razão, desde que esta seja compreendida de maneira suficientemente ampliada. Além disso, Porchat tinha uma consciência aguda dos limites da razão humana. Ele opunha-se com vigor aos filósofos que erigem a Razão, concebida com frequência de maneira lógica e matemática, em uma espécie de divindade tutelar à qual os homens deveriam servilmente se submeter. Sobre esse ponto, suas críticas a Protágoras e a Descartes tornaram-se clássicas e imprescindíveis.

O conflito entre as múltiplas filosofias desenvolvidas ao longo de toda a história conduziu Porchat, de início, a alinhar seus passos com os de Sexto Empírico e a tentar adotar a epokhé, a famosa “suspensão do juízo”, naturalmente impossível de ser praticada na vida comum. Ao mesmo tempo, ele mergulhou no estudo da lógica formal, a qual, com suas provas irrecusáveis, paga o preço caro da ruptura com o real.

A vida do dia-a- dia não pode ser plenamente vivida – e Porchat era um grande amante da vida e das alegrias e dos prazeres simples ou sutis que ela pode nos dar – sem a crença na realidade do Mundo, a crença em fatos sólidos que se impõem a nós, a qual é impossível, talvez mesmo uma loucura, colocar em dúvida. Trata-se, então, para o filósofo, de organizar suas crenças num saber, o “saber comum” apoiado no Real que se torna o pilar da unidade do pensar e do viver.

Porchat era um grande professor e marcou fortemente gerações de estudantes. Seu conhecimento da história da filosofia assim como das figuras maiores do pensamento contemporâneo era considerável. No entanto, o mestre deve sobretudo ensinar ao aluno a pensar por si mesmo, certamente inspirando-se nos grandes Antigos, mas articulando as questões que o interpelam em sua própria vida e fornecendo-lhes respostas precisas e rigorosas, embora sempre falíveis e expostas ao fluxo da novidade incessante do Real.

Embora tenha dito ter “perdido a fé” (o que parece indicar uma perda), Porchat guardou do cristianismo a paixão pela Verdade, uma confiança indestrutível no homem, uma admiração diante da beleza do mundo, um otimismo lúcido apesar do mal e das provações e, sobretudo, uma grande generosidade pela qual ele manifestava sua atenção benevolente a todos os que tiveram a oportunidade e o privilégio de conviver com ele. Lembro-me muito bem do seu sorriso iluminado, do calor de seu olhar, de sua escuta atenta, quando, jovem professor da UNICAMP, eu pude, em 1983, conhecê-lo no Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência que ele fundou. Quantas vezes não vi Porchat tomar essa atitude amigável com relação àqueles que ele encontrava! Profundamente ligado à sua família e um fervoroso apaixonado, ele formava com sua esposa Ieda um casal luminoso. Com que orgulho ele me mostrou um dia uma foto de sua filha Patrícia, quando ela era ainda muito jovem.

Egresso da escola de Louvain, moldado no pensamento de Aristóteles, adepto de um são realismo e formado em Pittsburgh no rigor analítico, eu tinha com Porchat profundas afinidades filosóficas. Como eu, Porchat era um adversário dos pensamentos de inspiração idealista, os quais atribuem um primado ao sujeito ou à linguagem às custas do real e da vida verdadeira. Ele criticou os discursos abstrusos, a vã erudição, os meros comentários de autores sem tomar posição pessoal e o desprezo pela verdade; todos esses entraves que sufocam hoje a filosofia ocidental. Mas os desacordos existiam entre nós, em particular com relação ao realismo científico. Nas discussões, Porchat se revelava um temível adversário. Como um jogador de xadrez – um jogo no qual ele se sobressaía – seus argumentos davam golpes inesperados, aos quais seu interlocutor respondia com dificuldade, para, em seguida, ouvir dizer que ele acabava de se contradizer... Esses diálogos socráticos se prolongavam às vezes até bem tarde da noite, terminando com sorrisos e olhares amistosos marcados por uma cumplicidade alegre.

É com emoção e gratidão que releio a dedicatória de meu exemplar de Rumo ao ceticismo: “Ao Michel, amigo firme de tantos séculos”. Sim, caro amigo philósophos, querido Porchat, nossa amizade deita suas raízes até à jovem Trácia, ela tomou corpo nesse Brasil que eu amo tanto, ela perdura agora em meu coração ao mesmo tempo em que a força do real e da vida me leva a crer em sua eternidade.

Tradução : Plínio Junqueira Smith (UNIFESP)