UM DESAFIO PARA O PENSAMENTO: A CRISE BRASILEIRA E SUA SUPERAÇÃO

Carlos Sávio G. Teixeira

Professor Adjunto e Chefe do Departamento de Ciência Política da UFF
Doutor em Ciência Política pela USP

02/08/2017 • Coluna ANPOF

O Brasil experimenta atualmente uma crise cuja principal consequência é a desorientação do país. A tese que sustento é a de que o fundamento mais importante e menos reconhecido desta crise é moral: um antigo e persistente problema de desidentificação nacional, a ausência de um forte sentimento de pertencimento coletivo. A maior parte da elite brasileira - composta pelos ricaços, a classe dirigente e a classe média - sempre se perguntou por que o Brasil não conseguiu se tornar parecido com os EUA, a Grã Bretanha ou a França. Essa pergunta contém uma resposta implícita negativa, cuja influência no desenvolvimento do sentimento de falta de tarefa para com o Brasil é enorme. As classes populares, por sua vez, guardam uma relação de ambiguidade em termos de identificação com o país.

A falta desta espécie de solvente universal que dá unidade e fomenta uma consciência coletiva da nacionalidade manifesta suas consequências em vários domínios da vida brasileira. O primeiro deles é o desconforto que os brasileiros têm em aceitar a ideia de que o Brasil possa dar uma contribuição original à história universal. É corolário disso a disposição mental do país para a cópia, particularmente das ideias e das instituições de outros lugares. O sentimento de inferioridade e incapacidade causado pela ausência de uma espécie de senso comunitário brasileiro produz efeitos intelectuais, econômicos e políticos.

Do ponto de vista intelectual, as duas perspectivas de explicação do Brasil que gozam hoje de maior prestígio, seja na academia seja na mídia, são o que chamo de liberalismo culturalista e estruturalismo sociológico, ambas informadas por elevado grau de colonialismo mental. A base da visão do liberalismo culturalista é a de que a nossa formação histórica foi dominada por uma herança de ideias, práticas e instituições advindas do mundo ibérico que, por serem negativas, precisam ser removidas. O fato de termos uma origem portuguesa gerou, nesta visão, o nosso atraso. A base da visão do estruturalismo sociológico, por outro lado, é a denúncia de que o problema maior do Brasil é ter se tornado um país capitalista, com muita desigualdade social que precisa ser combatida, sem, contudo, apresentar propostas críveis de reversão tanto do capitalismo como de sua desigualdade.

O remédio receitado para os males brasileiros pelas duas correntes de pensamento mais influentes no Brasil carregam fórmulas estrangeiras. O liberalismo culturalista propõe como obra modernizadora do país a adoção de ideais, práticas e instituições dos países anglo-saxões principalmente, em particular a noção de mercado tal como lá ele supostamente se organiza. O estruturalismo sociológico é menos preciso nas indicações terapêuticas, oscilando entre abstrações como a ideia de socialismo e práticas como a do estatismo e do corporativismo, ambos de inspiração europeia.

Este espírito colonial informará, através de muitas camadas de mediações, a política e a economia brasileira. Ambas têm sido pensadas e realizadas, nas últimas duas décadas, sob a liderança dos dois mais importantes partidos políticos do ponto de vista programático, PT e PSDB, a partir de um impressionante rebaixamento de expectativas a respeito das possibilidades do país. O PSDB confundiu um plano de estabilização monetário, meritório, com um projeto de nação. E o PT foi incapaz de entender que a necessária e bem sucedida política de socorro aos miseráveis, secularmente esquecidos no Brasil, não é nem sequer preliminar de projeto nacional.

O modelo de crescimento econômico, baixo, escolhido por PT e PSDB, se pautou em estratégia voltada ao aproveitamento de nossos recursos naturais, como minério de ferro, petróleo e soja. Esta estratégia deprimiu a produtividade industrial do país, tornando-o excessivamente dependente dos preços destas matérias primas no mercado internacional. Enquanto estes preços estiveram altos, em boa medida por causa da economia chinesa que, baseada em estratégia oposta à brasileira, alavancava a economia mundial, o regime de financiamento do consumo urbano permitiu mascarar os graves problemas estruturais de nossa economia. Quando a procura por commodities se reduziu e o seu valor caiu, o país se viu diante de uma feroz luta distributiva: os ricaços, credores da divida pública interna, passaram a exigir a redução dos parcos gastos sociais com os pobres e, principalmente, a diminuição dos recursos destinados ao financiamento do Estado que beneficiam a classe média, como os da previdência social. Parte majoritária desta classe média, por sua vez, capturada pelo discurso da mídia brasileira que se esforça, desde sempre, para enfiar o Brasil dentro do formulário das agências internacionais como a OCDE, reagiu contra os seus próprios interesses. E as classes populares têm, mais uma vez, sofrido caladas.

Tudo isso coordenado pela política nacional. Dominado há muito tempo pelo dinheiro, o sistema político - partidário e eleitoral - se viu acossado pela Operação Lava-Jato que desnudou a forma básica de operação de nossa democracia, ao revelar com a ajuda de métodos controvertidos do ponto de vista do Direito estabelecido no país, a promíscua e inaceitável relação entre o mundo dos negócios e a classe política - esta, literalmente, no bolso dos grandes empresários. Os escândalos de corrupção envolvendo todos os grandes partidos políticos reforçou um sentimento contrário à atividade política, que marca a cultura política brasileira desde sempre, adicionando à sensação fatalista - de que somos, como nação, inferiores e incapazes - mais algumas “provas”.

A saída da crise atual requer o resgate da ideia de projeto nacional (2). Num quadro de depressão moral como o vivido pelo país, isso só é possível com a presença, em alguma medida, do elemento romântico do pensamento. O problema é que o erro na dosagem deste elemento costuma ter consequências funestas. De toda sorte, muitas vezes na história a crise foi parteira de mudanças que fizeram a humanidade avançar. No Brasil contemporâneo pode suceder algo nesta direção. Há algumas convergências latentes que podem virar consensos transformadores. Retirar a política da influência - corrupta ou não - dos ricaços é iniciativa básica. Outra obra urgente e possível é uma grande ação de capacitação da maior parte do povo brasileiro: a péssima educação básica, cujo reflexo negativo em todos os domínios da vida nacional é facilmente perceptível, precisa de uma revolução no método e na ambição. O inicio destas duas reformas - cívica e educacional - preparariam o caminho para superarmos a nossa quase crônica falta de sentimento de tarefa para com o Brasil, abrindo caminho para a substituição da ética da reclamação, que tem nos pautado, para uma ética da reconstrução.

 

 

* Ofereço este texto à Coluna Anpof mobilizado pelo importante debate a que ela tem dado lugar, entre os expoentes da área de filosofia no nosso País, que tenho acompanhado com muito interesse. Como teórico da sociedade e da política envolvido com a questão da interpretação do nosso tempo e contexto, vejo com grande otimismo a contribuição que uma comunidade filosófica nacional atenta, tanto quanto uma comunidade de ciências sociais também mais nacionalizada, podem dar ao desenvolvimento de tal elaboração, como amadurecimento de uma vida de pensamento de que o país sem dúvida necessita...

(1) "UM DESAFIO PARA O PENSAMENTO: A CRISE BRASILEIRA E SUA SUPERAÇÃO" Resumo, ligeiramente modificado, da apresentação oral feita pelo autor no Seminário Visões sobre a conjuntura nacional: Para onde caminha o BRASIL?, organizado pela ASPI/UFF em comemoração de seu Jubileu de Prata.

(2) Quem sabe o “nacional” – durante um bom tempo tornado impopular para grande parte de nosso estrato intelectual – volte agora a ser uma referência relevante entre nós, como sugerido por exemplo, entre os filósofos, pelas contribuições de Renato Janine e José Crisóstomo de Souza a essa coluna.

 

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