UNGER, FILOSOFIA BRASILEIRA E SINGULARIDADE DA NOSSA EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA

José Crisóstomo de Souza

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Contemporânea da UFBA

16/12/2016 • Coluna ANPOF

Unger, Rorty e o `Romance de um Futuro Nacional`

Roberto Mangabeira Unger é por certo um dos importantes filósofos brasileiros dos nossos dias, seguramente um dos mais interessantes e provocativos, a julgar, por exemplo, pelo seu The Self Awakened: Pragmatism Unbound, já traduzido para o espanhol e em vias de ser publicado em língua portuguesa.2 Depois desse, já publicou, entre outros, The Left Alternative (2009), The Religion of the Future (2014) e The Singular Universe and the Reality of Time (2014). Participante da política brasileira desde há muito, autor do manifesto de fundação do PMDB e coautor de seu primeiro programa, Unger ainda se mantém como professor em Harvard, desde os anos 1970. No campo do direito, ele ainda bem jovem, seus trabalhos na área tiveram consideráveis consequências práticas nos Estados Unidos, através do progressista Critical Legal Studies Movement, para o qual também escreveu, com esse título, o manifesto.

Unger tem hoje uma obra plural, extensa e respeitável, com uma audiência global. É lido por gente como Perry Anderson, Jürgen Habermas e Richard Rorty, e comparado com Zizek ou Agamben no debate filosófico sobre democracia radical. Unger teria produzido até aqui, avalia Geoffrey Hawthorn, nada menos do “que a mais poderosa teoria social da segunda metade do séc. XX”. Trata-se de “uma cabeça filosófica saída do Terceiro Mundo para se tornar profeta no Primeiro”, acrescenta Perry Anderson, para quem Unger “faz parte da constelação de intelectuais do Terceiro Mundo ativa e respeitada no Primeiro, sem ter sido assimilada por este”. Ele tem mais a ver com o contexto singular da nossa experiência do que isso, porém, e não apenas por ter sido, ademais, ministro para assuntos estratégicos, do governo brasileiro, de 2007 a 2009, de novo em 2015, e por se manter cada vez mais ativo e influente na cena política e intelectual brasileira.

No Política: Um Trabalho de Teoria Social Construtiva, de 1987, Unger já se mostra um pensador que, mesmo residindo num outro país, pensa o Brasil e a partir do Brasil – tanto quanto a partir do mundo pós-colonial ora emergente, mais amplo e diversificado, para além do Atlântico Norte. “Um homem cuja cabeça está em outro lugar”, “um filósofo brasileiro” empenhado no “romance de um futuro nacional” – como o vê Richard Rorty, num ensaio cheio de terna simpatia pelo projeto. No Política, Unger encara a “instabilidade exemplar do Terceiro Mundo” e, dentro dela, “o exemplo brasileiro” como prenhes de possibilidades frente à relativa falta de perspectiva do Norte desenvolvido. E ele o faz - bem percebe Rorty - à maneira poética de Walt Whitman, que, no séc. XIX, contrastava romanticamente a promessa de uns Estados Unidos ainda por fazer, com uma Europa morna e já realizada, voltada para o passado.

Nosso filósofo caracteriza “a cultura do pensamento social e histórico” do Atlântico Norte como “alexandrina” e “decadente”, em contraste com um Hemisfério Sul obrigado a ser original e inventivo, mesmo que apenas para alcançar algumas das conquistas do Primeiro Mundo. Ele ouve soar no Brasil, apesar de tudo, no nosso tempo, “a voz de uma oportunidade transformadora”, em que homens e mulheres poderiam encarar a luta política como “participação num experimento exemplar”, que configura “outras opções possíveis para a humanidade”. Essa é a visão que Mangabeira Unger sustenta, do mundo e do Brasil, enquanto procura criticar e ultrapassar, já a partir de Conhecimento e Política, de 1975, as limitações dos conceitos e instituições democrático-liberais clássicos, em prol do que ele concebe como sendo uma democracia viva e transformadora, animada por indivíduos criativos e rebeldes, para além da social democracia e dos “determinismos estruturais” do marxismo.3

Um Filósofo Brasileiro `Neodesenvolvimentista` de Ultramar?

Unger formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, para tornar-se em seguida aluno e logo professor da Universidade de Harvard. Reconhecível ao público brasileiro principalmente como homem político e por seu sotaque norte-americano, ele poderia ser por alguns considerado um filósofo brasileiro de ultramar. O que não haveria de representar um problema, em comparação com o que ainda tem sido dominantemente a filosofia no Brasil nas últimas décadas. Pois, constituído por professores brasileiros sem sotaque estrangeiro, o Departamento de Filosofia da USP, por exemplo, que se tornou matriz formadora da filosofia acadêmica brasileira, já foi apelidado, ao reverso, de departamento francês de ultramar. E, no caso, pode-se acrescentar, como resultado de uma importação sem muita `transferência de tecnologia`: aprendemos com os franceses, não a fazer filosofia, que isso ficou para eles próprios, mas, o que é também respeitável, a estudar exaustivamente os filósofos europeus, apenas como seus eternos – competentes e apologéticos – comentadores internos. A essa influência marcante - antípoda em especial ao que se faz dominantemente nos Estados Unidos e já agora também na Europa e no resto do mundo, em termos de filosofia – Unger, entretanto, escapou.

É plausível especular que ele, em vez disso, foi de algum modo marcado, no Brasil, pelo viés nacionalizante e ensaístico, mais autônomo, que a elaboração brasileira de pensamento (inclusive filosófico) conheceu, principalmente no Rio de Janeiro, entre 1960 e 1970. E imaginar que seu neodesenvolvimentismo romântico, democrático-radical, retoma criticamente o marco hegeliano-sartreano (também marxiano) do pensamento de um Álvaro Vieira Pinto. Pois algo disso encontra-se sem dúvida no The Self Awakened: Pragmatism Unbound - ao mesmo tempo uma súmula, uma introdução e um coroamento da extensa obra de Mangabeira Unger. Que é um dos mais filosóficos de seus trabalhos até aqui, mas também um texto programático, entre ensaio e manifesto mobilizador, enfaticamente marcado por seu tom visionário, romântico e absolutamente assertivo. Pragmatismo liberto (unbound) evoca, não por acaso, Prometeu liberto, desacorrentado, sem peias, o rebelde herói mitológico, emancipador, dos românticos do século XIX europeu, de Goethe, Byron, Sheley – e Marx.

O hegelianismo de esquerda de Unger pode ser sucintamente caracterizado como uma réplica ao marxismo (tanto num sentido de proximidade como de contraposição), com ênfase na subjetividade livre e criadora (a autoconsciência), num futuro em aberto e na radicalização sem peias da filosofia. Quanto ao seu lado semi-sartreano, não distante do anterior, pode ser encontrado em sua concepção do homem como liberdade, negatividade e autoconsciência prático-ativa, confrontada, de outro lado, pela inércia e `dadidade` do mundo. O elemento de proximidade com Sartre é sublinhado pelo Prof. Martin Stone, da Universidade Yeshiva, em resenha do Self Awkened, que pode ser encontrada na internet. E no que diz respeito a suas concepções político-sociais, Unger pode ser aproximado, segundo diferentes aspectos, do campo comum a Pierre-Joseph Proudhon, Karl Marx e Ferdinand Lassalle, dos reformadores sociais. Mesmo que no Self Awakened ele não desça a detalhes programáticos, ele acena para interessantes e ousadas sugestões, muito contemporâneas, com relação a instituições políticas, economia, etc., dentro da tradição do reformismo social.

Marx, Pragmatismo Jovem-Hegeliano e Rebeldia Romântico-Prometeica

No Self Awekened, Unger começa por desenvolver, como suporte de sua proposta política, também existencial, o que chama de pragmatismo radical, ou radicalizado, liberto de possíveis limitações metafísicas e naturalistas remanescentes em Peirce, James e Dewey. E oposto às para ele emasculadas (moderadas) versões pragmatistas contemporâneas, neo-pragmatistas (aparentemente representadas por Richard Rorty, Hilary Putnam e Jürgen Habermas). Em comparação com outras formulações contemporâneas do pragmatismo, a de Roberto Unger – original, nada ortodoxa - de fato recupera e radicaliza seu sentido prático-criador, futurista, e sua vocação democrática-experimentalista (assumidos entre nós, na educação, por Anísio Teixeira e, de modo mais geral, prometida por um Gilberto Freyre). Ao mesmo tempo, para isso, a elaboração de Unger acentua a filiação hegeliana que o pragmatismo em boa medida já traz, mais claramente em John Dewey e George Mead. Com uma filosofia que incorpora ingredientes hegelianos de esquerda, e que comporta ainda ressonâncias nietzschianas, é curioso vê-lo retomar no século XXI a noção hegeliana de autoconsciência bem como a dialética dissolvedora/ reapropriadora que opõe a livre iniciativa prático-transformadora dos homens às estruturas “naturalizadas” e “congeladas” (hipostasiadas) - da sociedade, da política e do pensamento até aqui. De qualquer modo, para seus propósitos teóricos e práticos, Unger foi mesmo bater na porta filosófica certa, conseguindo, por aquela via jovem hegeliana, renovar, à sua maneira, as opções e concepções da esquerda, há tempos paralisada entre democracia liberal tradicional e marxismo como linguagem única da crítica e da mudança.

O próprio Unger reconhece que os temas do Self Awakened poderiam ser igualmente desenvolvidos a partir de Hegel ou do romantismo filosófico ou do historicismo, em lugar do pragmatismo (p. 28). Em What Should the Left Propose, ele admite que a maior influência sobre seu corpo de pensamento - “com exceção da influência ainda maior do cristianismo” - é da “filosofia alem㔠(p. 109). E seu muito filosófico Passion, an Essay on Personality, anterior, tem como principal preocupação “oferecer uma crítica e uma reconsideração modernistas da imagem cristã-romântica do homem, que forma a tradição central do pensamento do Ocidente acerca da natureza humana” (p. VII). No Self Awakened, entretanto, Unger vai francamente preferir as fórmulas – e o rótulo – do pragmatismo, porque, segundo ele, este “representa a filosofia atualmente mais viva”, “não entre professores universitários, mas no mundo” (p. 28). E é ao mesmo tempo uma corrente de pensamento que propõe uma “radical mudança de rumo de doutrinas e métodos (...), e de formas amplas de consciência que se têm espalhado pelo mundo” (p. 28-29).

Ao fim e ao cabo, embora o Self Awakened não mencione expressamente o Brasil, ainda assim pode ser tomado como uma elaboração filosófica que corresponde ao “romance de um futuro nacional” brasileiro, aquele das preocupações centrais de Unger. Uma elaboração com pontos de contato com o pensamento brasileiro dos anos 60 e 70, e com o que temos defendido como `poética pragmática` (pela celebração da ação humana como criação prático-sensível), e um exemplo do gênero de filosofia que chamamos de `filosofia como coisa civil` (pelo seu envolvimento, não sempiterno, com o tempo e o contexto).4

Certamente pode-se questionar o Self Awakened por assertivo demais (dialógico de menos), por um tanto esquemático (o que é justificável, num manifesto), e mesmo por juvenilmente romântico (o que pode ser politicamente complicado mas é também muito mobilizador). Seja o que for, entretanto, discutir esse livro de Mangabeira Unger, tal como outros dos seus aqui mencionados, é uma tarefa que promete bom proveito à comunidade filosófica brasileira, muitas vezes exageradamente eurocêntrica, histórico-exegética ou mesmo `escolástica` (tudo o que o trabalho de Unger não é). Tarefa promissora porque, corroborando-o ou criticando-o (e para ambas as coisas não faltariam motivos), alguns de nós poderíamos até, ao fazê-lo, acabar nos apanhando, surpresos, fazendo filosofia. Como Unger. Contemporânea e atenta à singularidade do nosso contexto. E com disposição de diálogo com o que corre fora dos muros da academia.

1 Este texto é uma versão condensada e modificada de “Unger, Pragmatismo Romântico e Democracia Radical” (no excelente, sobre Unger e Rorty, Pragmatismo Romântico e Democracia, de Tiago M. Araújo, Edufba, 2016), onde o leitor poderá encontrar a referência bibliográfica aqui não incluída.

2 The Self Awakened: Pragmatism Unbound, Cambridge University Press, 2007.

3 Para um resumo do núcleo do pensamento filosófico-político de Unger, ver o excelente texto de Zhiyuan Cui, encontrável em português na internet, que constitui o prefácio ao Política – Os Textos Centrais, S.P.: Boitempo, 2001.

4 Ver SOUZA, José Crisóstomo de. "A Filosofia como Coisa Civil”. In SOUZA, J.C. de (org.): A Filosofia entre Nós. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. Quanto à noção de ‘poética pragmática’, ver minha página pessoal WWW.jcrisostomodesouza.ufba.br.

16 de Dezembro de 2016.

DO MESMO AUTOR

Giannotti, 'a USP' e a filosofia brasileira (A propósito dos 40 anos da Anpof)

José Crisóstomo de Souza

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Contemporânea da UFBA

15/12/2023 • Coluna ANPOF