BNCC: para professor Edgar Lyra, formação básica não deve ter o mercado de trabalho como termo

13/04/2017 • Entrevistas

Na quinta-feira da última semana (6/4) o Ministério da Educação apresentou a Base Nacional Comum Curricular. O texto entregue ao Conselho Nacional de Educação trata da educação infantil e do Ensino Fundamental. O texto do Ensino Médio, que interessa especialmente os professores de Filosofia, deve ser entregue até o fim deste ano. O texto esteve aberto a contribuições entre 2015 e março de 2016. O professor Edgar Lyra (PUC/RJ), em entrevista para o portal da Anpof, comenta o texto que foi entregue pelo MEC, como avalia o processo e opina como deveria ser a BNCC.

Nesta entrevista, ele comenta sobre a legitimidade das instituições privadas no debate da construção do texto, mas critica o protagonismo que assumiu o interesse privado com a troca de governo e como gestores privados tornaram-se porta-vozes, na imprensa, do discurso em torno do fracasso do ensino médio brasileiro e o esgotamento do seu atual modelo.

Na esteira dessa discussão, ele aborda a MP 746, já aprovada e considera “imprudente” o que chamaram de “coragem” ao colocarem esse debate reduzido à canetada de uma medida provisória. A partir desta aprovação, ele adianta sua reflexão sobre o que deve vir a ser o texto da BNCC que trata do Ensino Médio. A “flexibilização” proposta, segundo Lyra, deve atender muito mais a interesses de formação abreviada para o mercado de trabalho que à chamada “educação integral”. Para ele, a BNCC deveria ser resultado de um processo paciente e participativo. Entenda ainda, nas respostas do professor Edgar, o que é a BNCC e o que ela pretende.

1) Qual a importância da BNCC para orientação da educação no Brasil?

A necessidade de uma “base nacional comum curricular” é apontada desde a promulgação original da LDB, em 1996 (Lei 9394, Art. 26). O Plano Nacional de Educação (PNE), Lei 13005 , homologado em 2014, coroou o processo situando entre suas metas a elaboração e implementação de uma BNCC. Trata-se de necessidade longa e legalmente reiterada.

O intuito reafirmado nessa trajetória era o de conferir unidade ao que se ensina e aprende nos diversos estados e municípios do extenso território nacional, claro, sem ferir a prerrogativa constitucional de estados e municípios elaborarem seus currículos. Deixando espaço para singularidades locais e diferenças de percursos formativos, o desafio era garantir a todo cidadão brasileiro uma educação básica igualitária, com referências comuns que tornassem possível a existência de um mundo efetivamente compartilhado.

2) Entre 2015 e março de 2016 o texto esteve aberto a contribuições. Como avalia esse processo? 

Avalio muito positivamente. Era muito importante que a construção da BNCC fosse participativa em suas várias etapas, com pactuação ampla, plural e continuada, não apenas para cumprir preceitos legais, mas para que o texto final pudesse ser efetivamente acolhido nos estados e municípios, tanto nas escolas públicas quanto privadas. A memória de tentativas falhadas anteriores de unificação apontava fortemente para a necessidade dessa participação. 

A primeira versão do documento foi, por isso, submetida pela equipe elaboradora ? constituída por cerca de 130 professores e gestores educacionais de todo o país ? a uma consulta pública que, até março de 2016, reuniu cerca de 12 milhões de contribuições, bem entendido, apenas no Portal digital disponibilizado pelo MEC. Some-se a esses registros um vasto conjunto de pareceres críticos e centenas de encontros realizados com educadores de todo país. Compiladas, essas participações deram subsídio à elaboração da chamada segunda versão da BNCC.

A mudança de governo deu-se logo após o documento ser entregue ao CNE. Suas duas primeiras versões estruturavam-se em termos de “direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento”, como determinava o PNE, texto com força de Lei. A finalização do trabalho previa uma terceira rodada de consultas a ser feita diretamente nos vários estados, e isso foi atendido pelo novo MEC. O documento decerto precisava de discussão complementar e acabamento, mas, à luz do que já tinha sido avançado, não de reestruturação. Fato é que as coisas logo começaram a mudar, percebendo-se o empenho da nova gestão em levar o trabalho de volta para uma concepção mais próxima daquela dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), estruturados a partir da ideia de “competências e habilidades”.

É curioso constatar – no tópico “Fundamentos Pedagógicos da BNCC” do texto da terceira versão, entregue ao CNE ainda sem o ensino médio (Ver p. 15) – a remissão à única ocorrência pedagógica do termo “competências” na LDB (Art. 9, Inciso IV) como parte da justificativa da reestruturação proposta. Não passe sem registro que todas as outras ocorrências específicas do termo na Lei de Diretrizes e Bases, por exemplo, combinado no par “competências e habilidades”, foram introduzidas pela MP 746/2016 ou pela Lei 13415/2017. A linguagem das competências, bem entendido, é uma linguagem dos PCNS, não do PNE ou historicamente da LDB, trazida para esta última somente pelo novo governo. 

Em suma, embora não seja possível aqui discutir em detalhe as modificações feitas, percebe-se já que elas vão além de disputas léxicas ou terminológicas. Não é de somenos importância que a estruturação por “direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento” tenha sido preservada apenas para a Educação Infantil, e que a expressão esteja ausente do restante do texto, supostamente lastreada na agora introduzida noção de “competência”. (Ver p. 17, último parágrafo). Ainda mais importante é registrar que tampouco essa inflexão estrutural foi abertamente discutida com as várias “partes interessadas”. Tenho especial receio – independente de minhas próprias preferências pedagógicas – que esse tipo de ruptura gere dificuldades para a futura compreensão, acolhimento e implementação das prescrições da Base que vier a ser homologada.

3) Como avalia a interferência de instituições privadas nesse texto, chamadas de "parceiros"?

Instituições privadas estiveram presentes no debate de construção da BNCC desde o começo, e isso me parece legítimo, desde que resguardada a diversidade representativa e, sobretudo, mantido o interesse público como norte do processo. A equipe que elaborou as duas primeiras versões assistiu a seminários, conversou com consultores estrangeiros, serviu-se de pesquisas produzidas ou subsidiadas por instituições privadas. Cada contribuição era cotejada com as demais e avaliada segundo sua maior ou menor serventia para um projeto precipuamente público. 

O que não me parece legítimo é o protagonismo que assumiu o interesse privado com a troca de governo – não apenas em relação à Base –, a ponto de serem gestores de instituições privadas as principais vozes de sustentação do discurso, na grande mídia, que evidenciava o fracasso do ensino médio brasileiro e o esgotamento do seu atual modelo. Era como se, numa retórica que ignorava linhas mais complexas de causalidade, a culpa do fracasso fosse primeiramente curricular e justificasse medidas urgentíssimas nessa direção.

A reforma do ensino médio veio, enfim, na esteira de uma farta divulgação de índices que mostravam quão atrasados estamos em relação a outros países. Foi deflagrada por medida provisória e, o mais grave, sob a alegação, repetida à exaustão, de que o tema já tinha sido muito discutido. Ora, o tema tinha decerto uma longa história de discussões, justamente porque muitíssimo complexo, e porque qualquer encaminhamento que viesse a receber careceria de legitimidade para ser implementado. Justificar a urgência e a relevância da MP 746 a partir do fato de que a discussão é antiga é, em suma, uma espécie de falácia fundada na duvidosa premissa de que qualquer ação seria melhor do que uma retomada objetiva da discussão. Anuncia-se inequivocamente como coragem, enfim, o que bem pode ser entendido como imprudência. 

Voltando à BNCC do ensino médio, a MP 746 transformou-se na Lei 13415 com rara velocidade e tornou difícil prever o que acontecerá com a terceira versão do documento. Não é de se estranhar que a finalização do texto tenha sido adiada para o final do ano. Escuto de professores e gestores de redes públicas de ensino, por onde passo, confissões de perplexidade e inquietação quanto ao seu trabalho em futuro próximo.

Se bem entendo a Lei 13415, cujo texto integral não é de entendimento trivial, a “flexibilização” proposta atende muito mais a interesses de formação abreviada para o mercado de trabalho que à chamada “educação integral”, inclusive reiterada em seu próprio corpo e na nova versão da Base para os segmentos Infantil e Fundamental. Tampouco creio que se tenha realmente em vista, como veiculado publicitariamente, o interesse dos estudantes e suas possibilidades de escolha, especialmente aqueles da rede pública, mais ainda os dos municípios interioranos, metade dos quais só conta com uma escola de ensino médio. Há obstáculos logísticos para a implementação da reforma já amplamente evidenciados pela comunidade educacional. 

4) Qual a BNCC pretendida e qual a BNCC que caminhamos para ter?

A melhor BNCC seria no meu entendimento aquela que resultasse de um processo participativo e continuado, paciente e determinado, necessariamente articulado como uma série de outras providências, boa parte delas presente no PNE: a conservação das escolas, a dignificação da docência, o combate às nossas imensas desigualdades sociais e a oferta de uma educação realmente “integral”.

Do ponto de vista da concepção formativa a ser principalmente observada, falo em meu próprio nome retomando uma esquematização feita para a Coluna ANPOF, em dezembro de 2016. Dizia haver duas grandes concepções em contenda: a que pretende assegurar um núcleo formativo comum a todos os alunos, com espaço para  diversidades e ênfase em aspectos ético-políticos; e outra principalmente aderida a projetos de formação técnico-profissionalizante necessários ao desenvolvimento do país. Tenho defendido abertamente a primeira dessas duas concepções. Embora reconheça entrelaçamentos, e conceda dependerem da solução do problema da profissionalização tópicos tão centrais quanto o da soberania nacional, entendo como miopia extremada a desatenção à crise ética, política e discursiva que nos assola. A escola continua sendo o possível lugar de reconstrução do nosso esgarçado tecido civilizacional. Um mundo de técnicos dispostos a tudo por um bom lugar no mercado de trabalho estaria, a meu ver, bem próximo das hoje abundantes distopias da ficção científica. 

5) Recentemente foi publicada "prestação de serviços especializados para a gestão integrada dos processos necessários à consolidação, disponibilização, divulgação e discussão da 3º versão da Base Nacional Comum Curricular". Isto é, fala-se na terceirização da finalização da BNCC. O que isso pode significar e implicar?

O extrato de contrato publicado no DOU do dia 23 de abril entrega à Fundação Vanzolini essa tarefa. Lê-se no site (http://vanzolini.org.br/institucional/quem-somos/) que se trata de “uma instituição privada, sem fins lucrativos, criada, mantida e gerida pelos professores do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).” Não tenho notícias de uma exposição de motivos, pelo MEC, para essa tomada de decisão. Talvez seja desinformação minha. Até bem pouco tempo, em todo caso, falava-se apenas de um “Comitê Gestor da Base” e de uma equipe de apoio cujos nomes dos especialistas somente agora, com a finalização dos textos para a Educação Infantil e o Ensino Fundamental, torna-se realmente público. Tampouco sei, dado que não tenho ciência do contrato em sua íntegra, se ele envolve apenas a conclusão do documento do ensino médio ou se tem por objeto o gerenciamento de toda a BNCC, após sua possível homologação pelo Conselho Nacional de Educação. Pelos termos do extrato do DOU, parece tratar-se do segundo caso, mas isso aqui não pode passar de especulação. O fato é que tem muita coisa em jogo na gestão do documento que finalmente chegará às escolas e, como a falta de clareza sobre a finalização do processo não ajuda em nada, imagino que os esclarecimentos necessários venham em breve a ser prestados.  

Ilustro minhas preocupações atendo-me mais uma vez ao ensino médio. Apesar da reforma prescrita pela Lei 13415 curiosamente não estabelecer piso – apenas teto – para observação das prescrições da BNCC, a base é citada 13 vezes no texto da Lei, além de ser posta como termo de avaliação da etapa. A inquietação aumenta se pensarmos que componentes curriculares antes obrigatórios, como a Filosofia e a Sociologia, devem ser agora definidos como “estudos de práticas” prescritos pela Base; fique claro, não apenas por questões de manutenção do emprego dos professores desses componentes curriculares, mas de horizontes formativos relacionados à concepção de “educação integral” subjacente às atuais políticas pedagógicas. Não creio, em suma, que esse acúmulo de incertezas seja benéfico. Qualquer que seja a BNCC resultante desse périplo, a comunidade escolar precisa sentir-se minimamente concernida pelas decisões tomadas na sua construção, sob ameaça de piora do pouco que até então tínhamos em termos sociais e formativos, mesmo técnicos e profissionalizantes.

* A nova versão da BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental pode ser obtida em: basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_publicacao.pdf   

ANPOF 2017-2018