Ciência e vacina: história, filosofia e método científico

01/02/2021 • Entrevistas

O Brasil começa o ano de 2021 não apenas assolado pela pandemia da Covid-19, que provoca luto e danos a dezenas de milhares de famílias, mas assombrado pelo negacionismo da ciência que busca desestimular a vacinação. O processo que envolve complexas etapas de pesquisa cai no descrédito de parte da população, vítima de um discurso que busca deslegitimar a ciência. Nesta entrevista, o professor Érico Andrade (UFPE) e diretor de comunicação da Anpof convida a professora Dra. Luciana Zaterka (UFABC) para uma conversa sobre a produção da vacina, sua eficácia, suas incertezas e a relação com negacionismo e, sobretudo, sobre o valor da ciência nesse momento em que vivemos.

Para a professora de Filosofia da Ciência, que também é bacharel em Química, ainda que a ciência seja uma construção humana claramente limitada, as saídas para os dilemas que ela mesma cria não são exteriores a ela. Para ela, a ciência deve ser guiada por valores como sustentabilidade, igualdade, democracia e respeito. Ela defende que, somente pelo conhecimento científico, e não pela ignorância ou exclusão que poderemos ter base para tomadas de decisão que considerem o bem da maioria, e não o interesse de alguns. Leia a entrevista abaixo. 

Érico Andrade: qual é a relação entre a produção do conhecimento científico e a produção de vacina?

Luciana Zaterka: A comprovada utilização da vacinação – a forma mais segura e eficaz de proteger as pessoas contra doenças, antes que elas entrem em contato com as enfermidades, afinal capacitam seus sistemas imunológicos na produção de anticorpos – tem como alicerce, sem dúvida, o saber científico. De fato, as vacinas, como qualquer produção científica, seguem testes, protocolos e controles rigorosos. O processo inclui uma complexa pesquisa inicial, testes em animais e humanos e, ao final, a avaliação dos resultados por agências reguladoras. As vacinas, existentes desde o final do século XVIII, foram aplicadas, desde então, em milhões de pessoas com eficácia e segurança. Essa segurança provém exatamente da maneira como a ciência opera: qualquer descoberta científica necessita de estudos exaustivos para que algumas hipóteses prossigam e outras sejam eliminadas.

Em outras palavras, para se distanciar da doxa, da mera opinião infundada, a ciência deve permanentemente testar as hipóteses levantadas e, é claro, comprová-las por meio de dados empíricos e protocolos para todos os procedimentos em todas as etapas. E aqui a História e a Filosofia das Ciências, área tão desprestigiada em nosso país, torna-se um conhecimento fundamental, pois tais protocolos não nasceram agora, mas foram sendo elaborados e compartilhados pela comunidade cientifica no decorrer de longos períodos do desenvolvimento científico. Não nos esqueçamos que a ciência moderna, nasce, exatamente, com a finalidade de ser pública, compartilhada, e voltada para o bem-estar da maioria da população.

Uma vacina, de maneira geral, passa inicialmente por uma fase laboratorial em que centenas de moléculas são analisadas até que se chegue à sua melhor composição. Aqui homens e mulheres de ciência testam suas hipóteses, estratégias e metodologias para tentar encontrar substâncias eficazes. A partir daqui essas substâncias são testadas em animais, como camundongos e macacos, para se obter (ou não) comprovação dos dados iniciais obtidos nas experimentações in vitro. Em seguida, entra-se na fase clínica em que tais componentes são testados em humanos, com o fundamental objetivo de verificar possíveis efeitos farmacológicos, reações adversas, visando confirmar sua segurança e eficácia. A questão do risco aqui é fundamental.

Essa etapa é dividida em três: na primeira fase, usualmente feita com um grupo pequeno de voluntários, adultos saudáveis, avalia-se a sua segurança, bem como se, de fato, gera respostas imunes ao organismo. Na fase seguinte, em que centenas de voluntários – com características semelhantes, como idade e sexo, das pessoas para as quais a vacina se destina – recebem a imunização, avalia-se de maneira mais profunda eventuais efeitos colaterais e, portanto, há uma preocupação minuciosa com a sua segurança e eficácia. Na fase três, de posse de todos os dados e protocolos anteriores, a vacina é administrada para milhares de voluntários, alguns recebem a vacina experimental e outros recebem um placebo ou substância neutra, sem efeitos farmacológicos, conhecido como método de duplo-cego.

Ao fazer a comparação dos dois grupos é possível se chegar com clareza e precisão na percentagem da eficácia da vacina. O objetivo principal é chegar em uma análise qualitativa e quantitativa de sua proteção contra a doença. Por fim, e não menos importante, órgãos oficiais de regulação científica da produção industrial da vacina e de sua aplicação à população, como a Anvisa, devem examinar todo o processo, conceder a autorização para a produção e a distribuição da vacina em dado território. O laboratório da indústria farmacêutica deve continuar avaliando continuamente a vacina, mesmo nessa quarta fase, pois os estudos clínicos são sempre realizados com um número de pessoas inferior àquele que receberá a vacina. Penso que com esse rico, complexo, minucioso e rígido protocolo a vacina só poderia ser fruto dessa magnífica construção humana que é a ciência.

Temos razões para confiar em vacinas feitas em tão pouco tempo? Tem um tempo específico para a ciência? Qual é o tempo da ciência?

A questão da temporalidade é fundamental e inquieta muitas pessoas nos dias de hoje, inclusive ao fortalecer argumentos negacionistas. Se, por um lado, é fato, por exemplo, que desde sempre vacinas demoravam anos, quiçá décadas, para ser produzidas, com a Covid-19 a perspectiva alterou-se radicalmente. A fase três, por exemplo, que demoraria anos para ser concluída, (afinal, por questões éticas, não se pode contaminar os voluntários propositalmente, tendo que esperar, então, que eles sejam expostos e contaminados pelo vírus contingentemente), foi consideravelmente reduzida. Como? Por meio da ciência, isto é, procurando introduzir esses voluntários em locais nos quais a incidência da doença é maior, onde existe um alto grau de contágio, assim podendo averiguar os seus resultados, níveis de segurança e eficácia.

Aliás, o Brasil, nesse sentido, se “beneficiou” ao participar por meio de duas instituições científicas reconhecidas para os testes de duas vacinas contra a Covid-19. Mas não somente isso. É claro que para serem minimizados quaisquer riscos, a ciência precisa de tempo. Efeitos colaterais podem não surgir a curto ou médio prazo, por exemplo. Ora, aqui notamos, mais uma vez, como o desenvolvimento da ciência, seu processo mesmo, é fundamental. As plataformas de muitas vacinas, as chamadas plug&play foram criadas, pelo menos desde 2010, como as de mRNA (RNA mensageiro), uma tecnologia inédita que ‘ensina’ a célula a produzir proteínas, e com isso produz uma reação de anticorpos contra a espícula do coronavírus.  Assim, cientistas criaram um modelo padrão e só trocam o material genético do vírus.

No caso da Covid-19, todos os estudos já realizados anteriormente envolvendo os vírus SARS e MERS auxiliaram na pesquisa e produção dessas novas vacinas, pois a proteína em questão, a Spike, já era conhecida. Aqui o tempo pode de maneira segura ser encurtado, o que não poderia ocorrer se a proteína fosse desconhecida. Além disso, não podemos esquecer tanto a rápida transmissão desse vírus, como a forma de contágio, que diferentemente do HIV, por exemplo, pode ser detectado em poucos dias. Essa rapidez e facilidade, sem dúvida, acelerou consideravelmente os estudos clínicos necessários.

Por fim, outro aspecto que não pode ser negligenciado é que a atual pandemia conseguiu reunir recursos impensáveis em outras épocas, de fontes as mais diferenciadas que, então, aceleraram o processo de pesquisa que sempre foi muito dispendioso. Penso que a partir dessas reflexões notamos claramente que não tivemos pulos ou etapas sem controle, mas que condições tanto internas como externas favoráveis a essas etapas dos processos científicos auxiliaram, felizmente, a sua realização mais rápida.

Acima você falou da importância dos riscos serem minimizados. Qual a relação entre as incertezas e o negacionismo?

Essa pergunta para quem trabalha, como eu, com Filosofia e História da Química é fundamental. Incertezas, riscos e indeterminações fazem parte dos processos científicos. Há muito tempo filósofos e filósofas abandonaram o mito da neutralidade científica, enxergando a ciência como uma construção humana e claramente limitada. Porém, o argumento contra o cientificismo não é, certamente, o negacionismo; em outras palavras, do meu ponto de vista a saída para as incertezas e controvérsias da ciência se encontra na própria ciência. Reconhecer possíveis controvérsias, limitações e riscos deve ser uma parte importante do processo científico, afinal a ciência é sobretudo antidogmática.

Assim, embora possamos partir da premissa que a síntese de uma determinada nova substância ou composto (como as vacinas) deve objetivar sobretudo um potencial benéfico para a sociedade, sabemos que não é isso o que sempre ocorre. Do ponto de vista geral, esse potencial benefício científico nem sempre acontece isoladamente, pois, no limite, cada nova molécula pode ter ameaças em potencial que ainda ignoramos. Casos exemplares são dos clorofluorcarbonetos (CFC) e do diclorodifeniltricloroetano (DDT). Neste sentido,  não podemos esquecer das questões epistêmicas internas ao conhecimento científico, como, por exemplo, o triste caso da talidomida (C13H10N2O4), composto que existe em duas formas equivalentes ‘diferentes’, os isômeros (S) e (R), que, embora prescrito para auxiliar mulheres grávidas entre os anos de 1957 e 1962 para minimizar os seus enjoos, possuía caráter teratógeno, ou seja, causava vários tipos de defeitos congênitos.

Ora, pesquisas feitas após o episódio sugeriram que uma das ‘formas’, o enantiômero S está relacionado com os efeitos da talidomida, enquanto o R é o responsável pela suas propriedades sedativas e anti-inflamatórias. Esse caso nos mostra que a imprevisibilidade epistêmica é intrínseca à grande parte da ciência. Mas, além dessas especificidades epistemológicas, ligadas à estrutura e função das moléculas, outro fator que nos chama a atenção é a complexa relação entre ética, ciência e indústria. Assim, se nos voltarmos para a história das ciências e das técnicas veremos que em alguns casos importantes o ethos da ciência se mostrou bastante problemático. Lembremos, por exemplo, da indústria tabagista que por décadas tentou minimizar os efeitos do cigarro para a saúde humana, inclusive impedindo a regulamentação ou mesmo as restrições ao consumo do cigarro que, comprovadamente, provocava entre outras doenças o câncer. Esses exemplos mostram que os produtos da ciência, muitas vezes, são imprevisíveis, porém o interessante é que ela mesma pode, em muitos casos, resolvê-los.

Acreditamos que a saída para os dilemas que a própria ciência cria não é externa a ela. Porém o núcleo da questão está em afirmar a importância e a confiabilidade na ciência em bases valorativas distintas. Os valores que guiam a ciência hoje, como o controle, o progresso desenfreado, a eficiência, o capital, a indústria, devem ser alterados por valores como sustentabilidade, igualdade, democracia e respeito. Assim, é pelo conhecimento científico, minimizando os riscos, aumentando a precaução, e não pela ignorância ou exclusão que poderemos encontrar elementos importantes para a tomada de decisão, levando em consideração não o interesse de alguns, mas o bem da maioria. Foi a ciência que descobriu, depois de muitos estudos, a causa dos efeitos da talidomida, foi a própria ciência que demonstrou a toxicidade do monóxido de carbono ou da nicotina. E ela mesma criou fármacos e tratamentos importantes com relação ao câncer.

Se o ano de 2020 vai ser lembrado como o ano da pandemia da Covid-19, ele também será lembrado como o momento em que mulheres e homens de ciência conseguiram pesquisar, em tempo recorde, a natureza e a disseminação desse vírus, bem como meios de neutralizá-lo. Tentar antecipar riscos, combater a ignorância ou o negacionismo, buscar aprofundar as relações benéficas entre o âmbito científico, social, político, econômico, ambiental, farmacológico e médico, é sem dúvida um desafio urgente. As bases da ciência contemporânea devem ser modificadas, mas isso não tem relação com o rico e complexo mecanismo que criamos para lidar com o mundo natural: a Ciência pública, compartilhada e voltada para o bem-comum.

Mais do que nunca, na atual pandemia, aprendemos que valores caros ao modo de vida capitalista, como o bem individual devem ser superados pelo bem comum e a única maneira de conseguirmos isso é por meio de uma campanha de vacinação rápida, eficaz e global. Em outras palavras, que essa triste situação nos ajude a refletir em quais os reais valores que devem nortear a produção e o desenvolvimento científico da humanidade.

A ciência é a melhor forma de lidar com pandemias como a COVID-19?

Sem dúvida nenhuma! A ciência não é a melhor forma, mas a única maneira séria, confiável e segura de lidar com as pandemias. É pelo esclarecimento e não pela ignorância que, quiçá, poderemos superar esse difícil e triste momento.