Entrevista com Edgar Lyra sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Edgar de Brito Lyra Netto

Prof. Filosofia PUC-Rio

03/03/2016 • Entrevistas

O Prof. Edgar Lyra é docente da PUC-Rio e Assessor assessor da SEB-MEC na elaboração do documento de Ciências Humanas da Base Nacional Curricular Comum.

Essa entrevista foi feita pelos professores Érico Andrade (UFPE) e Adriano Naves de Brito (Unisinos)

1. O período entre a promulgação, em 1996, da lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a atual redação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) está entremeado pela publicação de outros importantes documentos para a educação brasileira, como, por exemplo, o Plano Nacional de Educação e diretrizes para a redação de currículos. Gostaríamos de saber qual é o principal propósito da BNCC e qual é a sua relação com os demais documentos produzidos nestas últimas décadas?

R: O Plano Nacional de Educação é recente (Lei 13005 de 2014). Contempla entre suas metas prioritárias a necessidade de elaboração de uma Base Nacional Curricular Comum, na verdade reiterando a própria LDB, que, em seu Artigo 26, incumbia a União dessa tarefa, já determinando a observação de espaço para uma “parte diversificada”. A prescrição foi várias vezes reiterada, nos PCNEM (2000), no parecer do CNE ao programa Currículo em Movimento (2008), no documento final do CONAE de 2010, enfim, nas novas Diretrizes Curriculares para o Ensino Básico, homologadas entre 2010 e 2013.

Esses documentos decerto dialogam entre si, mas não é fácil fazer um resumo desse diálogo ou enquadrá-los numa “cronologia evolutiva”. Fato é que vem já de longa data o desejo de uma “base curricular comum” que, ao mesmo tempo, confira unidade ao Ensino Básico brasileiro e resguarde as diversidades de que é pródigo o país. Pode-se dizer, entrando na comparação solicitada, que os PCNEM foram pensados visando ao desenvolvimento de “habilidades e competências” e observando eixos de “representação e comunicação”, “investigação e compreensão”, e “contextualização sociocultural”. Reconhecendo a existência de várias filiações filosóficas, apontava para a aquisição de capacidades de leitura, de articulação interpretativa e argumentativa, e para a necessidade de contextualização de textos e questões filosóficas. A proposta foi mais geralmente entendida como muito aberta, embora tenha havido quem à luz íntegra do texto discordasse desse juízo. Como seja, foi visando a superar suas “ambiguidades”, que as Orientações Curriculares avançaram na definição de conteúdos e metodologias, produzindo listas de tópicos extensas, que acabavam por deixar aos estados e escolas as escolhas necessárias à produção de currículos condizentes com o efetivo tempo da grade curricular, escolhas que acabavam não observando um núcleo comum. Embora feito a partir da Filosofia, esse sumário desvela o motivo da estruturação da BNCC em termos de “direitos e objetivos de aprendizagem”. A escolha parece responder à exigência de que a Base seja prescritiva sem ser impositiva, em outras palavras, de que confira unidade ao projeto brasileiro de educação básica possibilitando, simultaneamente, que os currículos contemplem suas singularidades, regionais, culturais ou prescritas pelas várias modalidades e percursos formativos. A prescrição de direitos e objetivos de aprendizagem, pelo menos em tese, admitiria formas personalizadas de atendimento, sem o perigo da abertura excessiva. Mas, está longe de ser trivial a medida dessa prescritividade, sendo esse ainda um debate constante na elaboração da segunda versão do documento. Até porque dessas reavaliações dependem outras definições importantes, como a extensão da BNCC e seus caminhos internos de articulação e consolidação de identidade.

2. Mediante que critério foram formadas as equipes de consultores e assessores para a redação dos documentos de área da BNCC e, em especial, como foi formada a equipe da área de Filosofia? A equipe da Filosofia é responsável apenas pela produção do texto dessa área?

R: Quando a Secretaria de Educação Básica (SEB) do MEC assumiu o protagonismo do processo de elaboração da BNCC, havia uma ação bastante mais centralizada sendo levada a termo pela Secretaria de Assuntos Estratégicos. O modelo adotado pela SEB pôs em primeiro plano a exigência de que a elaboração e implementação da BNCC fosse fruto de “permanente negociação e cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios” (PNE, Art. 7°, §5°). Entendia-se que isso era de suma importância para um dispositivo que precisava ter acolhida nacional. Foi então constituída uma equipe de especialistas e assessores com mais de cem integrantes, vindos de todos estados e de todos os segmentos da educação, gente com ideias próprias e diversificadas sobre o que possa ser uma educação básica de qualidade. Além do compromisso com a Educação Básica, me parece ter tido peso nos convites a busca da “diversidade representativa”. É claro que há “arbitrariedade” na composição do grupo, ademais levando em conta fatores como a indisponibilidade, por quaisquer motivos, de alguns professores convidados pelo MEC. A promessa de submissão do trabalho à consulta pública funcionou, por outro lado, pelo menos para mim, como fator de diluição dessa arbitrariedade. Acredito que isso tenha igualmente acontecido com meus colegas nesse trabalho, Érico Andrade, da UFPE - que inclusive ajuda na formulação destas perguntas -, Emerson Costa, da SEDUC-SP e José Ailto Vargas, da SEDUC-ES. Seja como for, a necessidade dessa construção plural e negociada fez com que o processo adquirisse altíssima complexidade, passando pela mediação de divergências visíveis não apenas no debate nos meios de comunicação, mas, em outro tom, também internamente. Quanto à última indagação, foram muitos os encontros até hoje realizados, em geral em Brasília e Belo Horizonte, para discussão e trabalho conjunto de elaboração da BNCC. Há vários níveis de interação entre os atores, tendo os assessores, naturalmente, maior responsabilidade na negociação com as outras áreas e componentes em busca de conferir à Base a possível unidade. Como já foi dito, tudo é muito discutido, com todas as dificuldades que a lida com a pluralidade demanda.

3. Ensinar a História da Filosofia ou temas filosóficos? Como o documento da Filosofia na BNCC resolve essa discussão que está muito presente na pós-graduação? 

R: O binômio “história da filosofia” versus “temas filosóficos”, embora reconhecível academicamente, precisaria ser aqui matizado para dar conta da enorme discussão sobre ensino de Filosofia que a BNCC reabre. Não obstante os notáveis esforços da ANPOF nos últimos anos, e algumas iniciativas como mestrados profissionalizantes em ensino de Filosofia, existe ainda um fosso entre a Universidade - sobretudo a pós-graduação - e o Ensino Básico. Por motivos já aludidos, analisamos currículos de vários estados antes de começar a redigir o documento preliminar da Base. Era importante fazer um exame comparativo das propostas curriculares estaduais vigentes e disponíveis para consulta, à época, na base restrita do SIMEC (hoje essa pesquisa pode ser feita no “Portal da Base”). Esse exame mostrou que a Filosofia vem sendo ensinada, desde sua obrigatoriedade definida pela Lei 11684, de 2008, de formas muito diversas nos vários estados, tanto do ponto de vista da estruturação dos currículos – por conteúdos, campos temáticos, eixos, competências, etc. – quanto da progressão do seu ensino do primeiro ao terceiro ano. Tudo pesado, nossa escolha foi a de apresentar texto e conjunto de objetivos de aprendizagem concisos o mais possível. A intenção foi dar margem aos professores, colégios e estados para definir caminhos de convite dos alunos ao filosofar sem, entretanto, deixar de enfatizar experiências essenciais, na ausência das quais não se poderia dizer que uma introdução à Filosofia teria efetivamente tido lugar, especialmente em sua diferença relativa aos outros componentes curriculares e demais práticas de saber e crítica. Salta aos olhos a formulação “minimalista” do documento entregue à consulta pública. São apenas doze objetivos de aprendizagem propostos para os três anos do Ensino Médio, número substancialmente menor que o de qualquer dos outros componentes da Base. Cada um desses objetivos foi formulado de modo que o professor possa atendê-los por caminhos diversos, pondo em prática aquilo que de melhor sua formação lhe permita mobilizar, não importando se prioriza a história, os grandes temas filosóficos, ambos ou nenhum deles prioritariamente. Essa proposta assim aberta tem, obviamente, sido objeto de algumas críticas, por exemplo, as que alegam que apenas professores bem formados, em contextos favoráveis de gestão escolar, saberiam virar-se com ela. Sugerem via de regra algo mais fortemente prescritivo, ainda que não seja consensual em que direção deveria ir a elaboração de uma proposta mais impositiva.

4. A Filosofia tornou-se bastante técnica no século passado, de sorte que, assim como as demais disciplinas do ensino médio (Física, Biologia, Matemática ou Ciências Sociais), reúne um cabedal de conhecimentos específicos que precisa chegar àquele que é introduzido a ela. Estamos pensando em elementos como o seu vocabulário, nas teorias centrais de sua história ou nos métodos de análise e leitura de textos. Como a BNCC pode orientar a que o ensino da Filosofia nas escolas também dê conta dessa dimensão técnica que a disciplina tem?

R: Essa pergunta se relaciona muito diretamente com a anterior. Tendo a respondê-la com outra pergunta: - Como ensinar Filosofia a públicos não especificamente “filosóficos”? Bastante abrangente, essa questão se põe àqueles que vez por outra são chamados à mídia, também aos que oferecem cursos introdutórios em empresas ou para diletantes, enfim, a todos àqueles que têm que se haver com colegas de outras áreas de saber. O Ensino Médio ao mesmo tempo singulariza e diversifica esse desafio, que varia de escola para escola, de região para região, de faixa etária para faixa etária, de estrato social para estrato social. Fato é que as chances de êxito nessa lida dependem da aquisição de um real saber docente, saber que decerto demanda estofo teórico, mas, sobretudo, capacidades retóricas capazes de encontrar caminhos adequados a cada circunstância e cada público. É muito importante lembrar, nesse sentido, que a BNCC pode muito pouco se não se fizer acompanhar da contemplação das demais metas do PNE; e que não será um currículo impositivo que aumentará as chances de fomentar nos alunos o desejo de filosofar e estudar Filosofia. A Base precisa por isso deflagrar uma ampla gama de ações, que envolvem rever a atratividade do magistério, também a qualidade da formação dos professores, inicial e continuada, assim como melhorar as condições gerais de trabalho nas escolas. Um dos bons frutos da elaboração da BNCC parece ser já sua capacidade de trazer essas discussões para um espaço de maior visibilidade.

5. O documento apresenta claramente uma ordem -não completamente linear, é verdade - de temas a serem tratados ao longo do ensino médio. O que levou a equipe a estabelecer essa ordem e quais as razões que sustentariam essa escolha?

R: Trata-se de uma ordem apenas sugerida. O documento de título “Como Ler a Base”, introdutório à BNCC, deixa claro que, resguardadas as transições entre etapas e observado o conjunto de objetivos que as caracteriza, os elaboradores dos currículos podem propor novos sequenciamentos de aprendizagem. Isso significa liberdade de combinações ao longo dos três anos, bem entendido, contanto que garantida ao aluno, desde o início do primeiro ano, uma aproximação à singularidade do pensar filosófico e contempladas, ao final do terceiro, o conjunto de objetivos propostos. Nunca é demais ressaltar que a BNCC não é já ela mesma um currículo nacional, até porque deve constitucionalmente respeitar a autonomia de estados e municípios na gestão dos seus sistemas de ensino. Isso significa que o trabalho de reformulação curricular não termina com a homologação do documento pelo CNE; em outras palavras, que a BNCC precisa ter suas prescrições bem discutidas e amadurecidas para que chegue a originar bons currículos, ao mesmo tempo unidos por espírito comum e diferenciados segundo necessidades dos estados e escolas. A BNCC só terá seu papel efetivamente cumprido se, depois de homologada, colaborar para manter aquecida uma discussão sobre Educação Básica em nível bem amplo.

6. Como os documentos finais da BNCC se relacionarão com a escolha dos livros didáticos nas escolas e, em especial, como o documento da Filosofia orientará essa escolha? As escolas terão algum grau de autonomia para a definição dos livros que usarão para o ensino da Filosofia?

R: Como foi dito, os estados e suas escolas têm legalmente autonomia para elaborar seus currículos e escolher os livros didáticos que a eles melhor atendam. A pergunta a responder, me parece, é aquela sobre o tipo de deslocamento que a atual proposta da BNCC produzirá sobre a produção, oferta e escolha pelas escolas de livros didáticos de Filosofia. Mas, entramos aqui num terreno marcadamente especulativo. A literatura sobre ensino de Filosofia no nível médio, bem como, mais especificamente, os livros didáticos de Filosofia, decerto tiveram sua oferta aumentada desde a definição da obrigatoriedade do ensino de Filosofia em 2008. Isso é animador e não me parece que a BNCC vá desestimular esse crescimento, podendo, talvez, contribuir para diversificá-lo. São, todavia, muitas as variáveis. O ex-ministro Renato Janine, sempre que tinha oportunidade, falava em estimular a digitalização do material didático de modo a dinamizar seu uso, liberdade de criação e escolha. São, de todo modo, muitos os interesses em jogo e somente num escopo político mais amplo é possível lidar com eles. A BNCC por si só não tem esse poder. Ainda uma última lembrança diz respeito às avaliações de grande escala, que vêm funcionando como verdadeiros balizadores curriculares, com muitas escolas tentando reorganizar seus currículos de modo a aumentar as chances de sucesso dos seus alunos no ENEM. É minha opinião pessoal que o ENEM dos últimos anos foi bastante “filosófico”, mas, por razões intrínsecas, a formulação dos seus itens não pôde e não pode ser objeto de consulta pública, como se dá, em boa medida, com a definição dos objetivos de aprendizagem da BNCC. Espera-se que a Base, em futuro próximo, passe efetivamente a balizar a elaboração dos currículos e, consequentemente, a fornecer diretrizes para as avaliações.

7. Como o documento preliminar da BNCC, que agora conhecemos, evoluirá para sua versão final? Como a equipe vai trabalhar as sugestões que ainda podem ser feitas no portal do MEC dedicado à BNCC e nas consultas públicas?

R: Um dos temores dos envolvidos no processo de elaboração da Base dizia respeito ao processamento das contribuições feitas pelos vários canais disponibilizados pela SEB/MEC, o mais aberto deles o “Portal da Base”, que hoje contabiliza mais de 10 milhões de interações. A UNB foi mobilizada para trabalhar na organização desse material e, no final de 2015, buscou na PUC-Rio auxílio para o processamento qualitativo das contribuições. O colega Marcelo Burgos, professor dessa última Universidade e assessor de Ciências Sociais da BNCC pediu-me que o ajudasse nesse processamento auxiliar à UNB. A ideia era que as contribuições públicas pudessem retornar às mãos das equipes em ponto de efetivamente serem levadas em conta na elaboração da segunda versão do documento. Trata-se de uma empresa pioneira, trabalhosa, difícil, mas muito necessária a um processo mais participativo. Fato é que foi solicitado pela SEB ao pessoal de cada componente curricular que, após suficiente exame da primeira leva de retornos, redigisse documento esclarecendo quais critérios seriam adotados na lida com esse feedback. Esses textos, ainda não disponibilizados no momento da redação destas respostas, já têm espaço definido no “Portal da Base”. Registre-se, ainda, que essas contribuições “digitais”, embora muitíssimo importantes pela sua quantidade e proveniência diversificada, não constituem os únicos retornos a levar em conta. A Filosofia, por exemplo, aguarda pareceres críticos de quatro doutores com compromisso reconhecido com o ensino e a formação de professores de Filosofia – professores Eduardo Barra (UFPR), Elisete Tomazetti (UFSM), Filipe Ceppas (UFRJ) e Patrícia Velasco (UFABC). Muitos foram os encontros presenciais com partes interessadas, havendo ainda organizações de várias naturezas produzindo documentos e empreendendo ações com o intuito de colaborar no perfil do documento final. Por fim, os retornos da consulta pública têm sido encaminhados aos representantes dos estados e municípios de modo que possam ter participação mais lúcida e ativa na rodada final de negociações que precederá a entrega do documento ao CNE para homologação. Infelizmente, não é possível apresentar neste espaço - muito oportunamente cedido pela diretoria da ANPOF - um balanço mais detido das mudanças em curso na produção da segunda versão da Base. Posso apenas salientar que a aprovação do documento preliminar foi quantitativamente muito grande, com mais de noventa por cento de anuência geral, mas que a SEB não pretende extrair disso nenhuma legitimação plebiscitária de suas ações. Cresce, assim, a importância da publicação dos critérios adotados por cada componente e área, já que acolher sugestões de modificação significa contrariar os que concordaram, às vezes “fortemente”, com as propostas que analisaram. É consenso interno na Filosofia, neste momento, que alguns ajustes precisam ser feitos na proposta inicial, tanto para melhor enfatizar, no texto introdutório, o espírito que define o conjunto de objetivos propostos, quanto para precisar a redação e os horizontes prescritivos desses objetivos de aprendizagem. Mas, como disse, há outros retornos por vir. Não tenho, enfim, competência para assegurar que o prazo oficial de homologação da BNCC (julho deste ano) seja cumprido, por mais que trabalhemos para isso. Mas, homologada até lá ou não, seria muito interessante que as prescrições da Base para a Filosofia – e mesmo as gerais - pudessem ser discutidas na XVII ANPOF.

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