ENTREVISTA GIANNOTTI: MARX, WITTGENSTEIN E O CAPITALISMO HOJE (PARTE II)

07/12/2017 • Entrevistas

Parte II da versão condensada de entrevista de José Arthur Giannotti a Vinicius de Figueiredo, publicada originalmente em Analytica, v.15, n.2, 2011, sob o título “Caminhos e Percalços de um Trabalho”. Giannotti é talvez o mais destacado “pai fundador” da filosofia acadêmica brasileira que tem a USP como matriz, nosso filósofo n.1, um bastião de sua ortodoxia “goldschmidtiana”, depois um defensor da tese de filosofia como ensaio, e também um estudioso que, a partir de Marx, empenhou-se em desenvolver um pensamento filosófico próprio (Crisóstomo, ed.)

Pergunta: Em que medida esta ênfase no logos se liga ao estudo da lógica em sentido clássico?

Resposta: Se um jogo de linguagem é um juízo, ele vai muito além da predicação. Por isso, estou metido nesse estudo até hoje. Não é à toa que, de um lado, leio e releio Heidegger para verificar como um pensamento funciona antes da predicação, de outro, procuro Wittgenstein para verificar como um jogo de linguagem, em particular aqueles não verbais, depende de um ajuste da bipolaridade numa base que somente pode ser dita por proposições monopolares. Desde Platão e Aristóteles dizer algo de algo é formalizado segundo a estrutura predicativa que, como tal, apresentava a estrutura do real. Depois do império do cogito houve a necessidade de ligar a representação ao representado, quando o conhecimento deveria operar antes de se enquadrar na estrutura formada por proposições ligadas em silogismos. Os sistemas metafísicos passam então a ser precedidos por estudos sobre o método ou da natureza do entendimento. E aos poucos a predicação passa a ser pensada como determinação, conformação restringente do estado de coisa. O idealismo alemão para ir além da predicação necessita tomá-la como ponto de partida. Por isso não escapa da reflexão, seja do cogito, seja do espírito. Daí ter sempre no horizonte a pergunta pelo que a predicação põe. Essa questão desaparece para a fenomenologia e para Wittgenstein. Por isso me parece um despropósito buscar os fundamentos de uma crítica da modernidade num diálogo entre Kant e Hegel.

O pensamento filosófico contemporâneo de ponta tem que enfrentar o imperialismo da linguagem que impede qualquer pensamento fora dela. Qualquer pensamento, qualquer situação emotiva, qualquer vontade etc. existem na medida em que são ditos. Por isso Wittgenstein precisa recorrer a exemplos para mostrar como os sentidos das expressões estão ligados ao uso das palavras. Do mesmo modo, o segundo Heidegger precisará recorrer a palavras originárias, aquelas que dizem um modo do ser vir a ser e se distanciar do ente, que os filósofos originários captaram quando uma época histórica estava se gestando. E a palavra de nossa época é “Técnica”. Mas a extraordinária produção de nossa tecno-ciência não é atravessada pelas políticas do Estado e do mercado?

Não é a dialética do trabalho, mas a predicação que foram água abaixo. A fenomenologia descobre o antepredicativo, um universo de práticas significativas operando antes do pensamento predicativo. Heidegger leva ao limite esse isolamento pois, se o pensamento pensa basicamente o ser, não será na cópula “é “que vai ser encontrado. Por ainda estarem ligadas à predicação, as ciências não pensam, conforme esta interpretação.

No entanto, o jogo de linguagem de Wittgenstein quase sempre não é predicativo. É formado de regras de ação agarradas a objetos. Essas regras, para serem seguidas, necessitam de um método de projeção, sendo o método projetivo predicativo muito pobre porque liga toda a riqueza dos estados de coisa à estrutura estreita do “S-P”. A filosofia da lógica amplia seus escopos na medida em que passa a gerir o problema da enunciação da regra e dos modos de ela ser seguida. A lógica formal da predicação passa a ser um dos sistemas formais possível. Não há mais uma única lógica verdadeira. A filosofia se liberou tanto da predicação quando da necessidade de dizer o ser. Importa, como filosofia da linguagem, examinar como funcionam as regras conforme são seguidas e as condições materiais para que isso possa ser feito.
(...)

Pergunta: Gostaria de ouvi-lo um pouco mais sobre sua objeção à ideia de uma razão instrumental, conceito weberiano caro aos autores da teoria crítica. Supor que o agente dispõe com clareza dos meios a ponderar para atingir um fim dado ou, ao contrário, supor que, dispondo claramente dos meios, o agente possa, por referência a eles, determinar fins factíveis a sua ação – parte-se, nos dois casos, da hipótese de que a consciência permanece, em princípio, idêntica a si mesma, ao perseguir fins estabelecidos de antemão. Você assinala que esta hipótese descarta que a praxis, embora admita a representação prévia de fins, modifica-se conforme processos efetivos do agir. Ignora, enfim, a existência de processos de identificação e individualização estabelecidos sobre práticas que não podem ser antecipadas de partida. Nesses processos, como você insiste desde Trabalho e Reflexão, toda a agência é atravessada pelo recurso a elementos materiais que, uma vez manipulados, ganham densidade simbólica e, nesta medida, incidem sobre a consciência dos indivíduos, cuja conduta
deixa de ser linear. O conceito de razão instrumental, entretanto, parece supor que a consciência permaneça idêntica a si mesma durante os processos de socialização, da eleição dos fins ao cálculo dos meios requeridos para realizá-los.

Resposta: Por isso, falo em logos, não em razão e muito menos em consciência. A consciência sem linguagem é muda, e a linguagem joga a consciência num universo intersubjetivo onde cada significado está cercado por uma aura de indefinição. Além do mais, não vejo no tecido borbulhante de nossas práticas linguísticas um ponto de vista único capaz de enfeixá-las integralmente. Estou muito ligado à proposta do último Wittgenstein, que as pensa como práticas judicativas a partir de outras práticas judicativas. É o que me resta do conceito de razão. Isto significa que estamos sempre abrindo espaços para regras bipolares que se apoiam em regras de vida, que só podem ser formuladas por proposições monopolares. E esta diferença entre o bi e o mono se forma, por exemplo, quando fazemos rodar uma bola, cujo movimento cria dois polos fixos e inúmeros círculos diferenciados.

Sob esse aspecto, a razão instrumental é uma ilusão, como é ilusão toda forma de razão pensada pela filosofia da representação. Supõe-se que as variações de uma expressão significativa são alinhavadas por um fio normativo que toma essas variações como modificações de um único paradigma. Atrás de cada juízo deveria haver um nome que aspirasse as variações de cada julgamento. Assim, no juízo “Sócrates é mortal” estaria o nome “a mortalidade de Sócrates”, demarcando o corpo de sua significação. Ora, não há razão alguma para dividir este juízo num nome subjacente e um ato de asserção. Além do mais, ele somente tem sentido num complexo de proposições que quase sempre não estão sob forma predicativa. Uma proposição precisa ser entendida na sua complexidade funcional e, igualmente, procurando descobrir as condições de seu exercício. Um jogo de xadrez possui regras determinadas, mas a partida não está definida e, além disso, essas regras precisam para serem efetivamente seguidas de certas condições reais. Ninguém joga xadrez num deserto com peças de gelo. Não é a política que lida com essas condições de existência? Por isso não é sistema, mas fluxo que lubrifica os sistemas sociais.
(...)

Pergunta: Percebe-se que sua formação, marcada por Granger e pelo marxismo, fez que, em sua trajetória, a crítica estivesse sempre orientada para a análise dos processos sociais considerados como gramáticas dotadas de necessidade interna. E isso, mesmo quando a investigação dos processos sociais exigia o abandono da ideia clássica de razão, em prol de uma noção pouco rígida de racionalidade. 

Entretanto, você insiste sobre a necessidade do capitalismo contemporâneo em produzir uma ilusão necessária, sem a qual sua reprodução social estaria comprometida. O caráter absoluto do capital, você afirma, se apresenta como ilusão necessária a seu funcionamento social (cf. 2011, 205). A “ilusão necessária”, como é sabido, é uma noção cara a Kant, que a admite sob o uso regulativo das ideias especulativas. Mas em Kant, esta totalização racional é expressão máxima da unidade sistemática; embora a crítica nos previna sobre o erro que seria hipostasiá-la em um ente existente em si e por si mesmo, ignorando tratar-se de eine blosse Idee, o fato é que, como ideia, ela assegura a completa inteligibilidade das partes a que se refere a partir de sua remissão integral ao princípio que as unifica.

Ora, a ilusão necessária kantiana, embora operasse no nível da linguagem, não das coisas, nem por isso deixava de ser a expressão da convicção de que a razão possui uma natureza sistemática. Por isso, a totalização racional kantiana não admitia “folga”, “imprecisão”, “emperramento”, “fibrilação”... Em contrapartida, a constelação de metáforas mobilizadas por você aparentemente colide com a ideia de sistema, a qual remete a uma totalidade pouco afeita ao tipo de indeterminação que, como você também aponta, estaria no centro do modo de produção capitalista contemporâneo.

Resposta: Tomar como ideia diretora o logos não é sucumbir à ideia de razão, em particular tal como foi articulada por Kant e explorada pelo idealismo alemão. A unidade da razão, em Kant, é determinada pelo ideal transcendental que depende do princípio da determinação completa, vale dizer, de um feixe de predicações. Logos, para mim, designa práticas significativas alinhavadas por jogos de linguagem que, sendo pensamentos, verbais ou não, se juntam num tecido de juízos baseando-se em juízos. Não há ponto de partida nem ponto de chegada. Mas se as práticas cotidianas estão sempre se apoiando numa imagem de mundo é preciso procurar delinear o que entendemos por imagem e por mundo. Ora, as análises da imagem ambígua como aquela do pato/lebre mostram algo que os clássicos nunca tematizaram: vemos, de acordo com uma gramática, tanto uma figura como a mudança de aspecto. E essa mudança de aspecto não pode ser entendida nos termos clássicos como o resultado da prática de uma faculdade da alma que ora se lembra do pato, ora da lebre. Se somos capazes de ver a mudança estamos liberados da presença do suporte mimético. E não nessa capacidade regulada de ver essa mudança que se movem os processos de representação, a transformação do sinal em signo? Tentei examinar esta questão no primeiro ensaio de Notícias no Espelho (2011), precisamente dedicado à noção de imagem.

Daí por que, quando falo de ilusão necessária estou muito longe do discurso kantiano. Vejo a questão aparecer quando um valor de troca é projetado em qualquer valor de troca que possa aparecer no mercado. Como estes precisam ser alimentados por uma identidade – uma quantidade de trabalho socialmente necessário -; como essa identidade é post festum, pois somente a troca efetiva vai determinar o grau em que a produtividade foi posta em movimento e que a oferta vai cobrir o processo, este pressuposto de igualdade é uma representação que se faz equivalente geral e se encarna no dinheiro, mas configura uma imagem de todo o processo antes de que ele seja efetuado fatualmente. A imagem está no processo de troca e não na imaginação. Você me cobra precisão nos conceitos. Ora, estou longe desse pressuposto platonizante, pois toda significação se conforma num determinado jogo onde traços se firmam e outros se tornam nebulosos. Nossa tarefa é tanto estudar as zonas claras como as zonas cinzentas de nossas criações. Na política isso resulta em reforçar a análise das práticas coletivas da democracia, que hoje implica uma nova interdependência de nações e mercados. Não se desenha a necessidade de um novo federalismo?

Pergunta: Uma vez tendo sido relegada a a ideia de revolução, a social democracia encontra no republicanismo sua inspiração para cogitar uma ordem internacional? Isso não soa como um “retorno a Kant”?

Resposta: Não há qualquer retorno à Kant. Um novo federalismo não será a reunião de estados nacionais na base de um novo contrato político, mas tendo como pano de fundo mercados internacionais cuidando de produzir, de modo contínuo, o necessário para oferecer bem estar às suas populações. Uma nova bürgelische Gesellschat [sociedade burguesa], você poderia dizer... Ao explicitar essa problemática, me identifico com as raízes da social-democracia, não com este ou aquele partido, mas com a esperança de um controle democrático do capital, e com esta ou aquela corrente da política brasileira que possa recolocar essa questão. E assim me transformo num escritor maldito, que imagina ser possível se meter nas práticas odiosas da política atual sem se deixar comprometer por ela. Os limites da predação capitalista aparecem por todos os lados.

Que o digam os ecologistas. O grande passo é transformar essas demandas num jogo político, o que inevitavelmente também passa por partidos. E não podemos deixar de assinalar as destruições provocadas pela crescente cultura de massa. O ensino de massa é um desastre em qualquer lugar do mundo. Nos países civilizados ele convive com sistema de formação paralelos de bons profissionais. No Brasil, em particular o ensino universitário, se transformou num processo de ascensão social. O que seria muito bom se fosse compensado por um sistema de formação de quadros. Sem isso, numa imaginei que pudesse me defrontar com tanta culta ignorância. O Brasil está cheio de advogados que não sabem advogar, médicos que têm licença para matar e uma malta de filósofos que não sabem pensar. 

Pergunta: Ao investigar processos sociais heterogêneos que se ajustam entre si através da projeção de uma medida comum, ilusória e necessária, você não deveria levar em conta os sujeitos desta ilusão? E pôr em relevo o fato de que os agentes se tornam sujeitos na medida em que integram um universo mercantilizado, no qual, aliás, eles mesmos se tornam mercadoria? Quando se trata de diagnosticar nossa modernidade, haveria algo mais decisivo em jogo do que o fato de que estamos em um universo saturado de mercadorias?

Resposta: Um sujeito move jogos de linguagem e é movido por ele. Cada jogo determina e é determinado por sujeitos particulares. E na linguagem como um todo sempre aparece a distinção entre eu, tu e ele. Não vejo porque conceder toda essa importância ao sujeito. Não seria mais pertinente verificar melhor como eu, tu, ele, nós e os outros vão se formando, unindo-se e separando-se? Ora, a medida das trocas mercantis não me parece assegurar sua identidade quando os títulos dos mercados são trocados ou ainda quando transcorrem trocas de posições políticas.

Os sociólogos estão cansados de insistir na clivagem de nossa sociedade. Se o deus capital morreu, não é por isso que o diabo correspondente deixa de fazer seus estragos. Primeiramente procuro o diabo no metabolismo que o homem, hoje em dia, mantém com a natureza. E já nesse nível os conceitos perdem seus fundos precisos e passam a ser usados conforme as circunstâncias. Daí a metáfora da fibrilação. Esses conceitos são partes de regras que servem de referência para os agentes agir e assim negociar com a norma. A mesma regra moral é negociada de modo diferente quando atinge minha família ou um personagem público. Dados os sistemas simbólicos, a questão básica é como seguir suas regras. Mesmo quando os pintores estavam sob o domínio da perspectiva, eles a usavam diferentemente. Se ela servia para imitar, era com intenções pictóricas diferentes.
(...)

Pergunta: Quais perspectivas você contempla no cenário filosófico atual? O que se põe como tarefa, em especial no caso da reflexão moral, tão atravessada pela exigência de normatividade?

Resposta: Antes de tudo convém fugir da gangorra em que o pensamento contemporâneo se meteu. De Kant para Hegel e de Hegel para Kant, conforme às circunstâncias. A “virada linguística” e o “fim da metafísica” nos colocam problemas filosóficos que vão além dos quadros clássicos. Não há sociedade sem regras morais e o problema é como segui-las, como elas são negociadas em determinadas circunstâncias. Não vejo necessidade de legitimá-las. Mas o próprio exercício da moralidade não faz com que os agentes se conformem como agentes que vão além da linguagem e das formas tradicionais de sociabilidade e assim se abrem para a experiência de outras experiências morais? Não vejo nesse além nada de místico, mas simplesmente o convite para que rodemos de novo a bola da linguagem e encontremos novos polos e novos círculos e paralelos, ou melhor novas paisagens de nossa humanidade.

 

ANPOF 2017/2018