Futuras filósofas: o caminho que se abre para as mulheres

Nádia Junqueira Ribeiro

Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof

30/03/2020 • Notícias ANPOF

Qualquer estudante de Filosofia possivelmente lembra-se que seu primeiro contato com o pensamento da Antiguidade, seja no Ensino Médio ou no Ensino Superior, envolveu nomes como Aristóteles, Platão, Heráclito, Epicuro. Quantos estudaram Hipátia de Alexandria? Ester Barbosa, estudante de Graduação em Filosofia na UFRJ, conheceu a história da filósofa da Antiguidade Tardia por conta própria, ainda no Ensino Médio. Em uma locadora de filmes, escolheu um filme sobre a astrônoma nascida no Egito e, desde então, seu interesse por Hipátia só cresce. Hoje, realiza monografia pesquisando o pensamento da filósofa. A experiência de Ester não é um caso isolado entre aqueles que estudam Filosofia. As mulheres estão à margem do cânone e não é incomum que alguém tenha uma formação em Filosofia, de Ensino Médio à pós-graduação, sem ter estudado uma mulher. Mas a realidade, pouco a pouco, parece mudar no Brasil.

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Ester Barbosa pesquisa Hipátia de Alexandria, filósofa que conheceu assistindo a um filme quando estava no Ensino Médio

Graças a iniciativas de professoras e professores em todo o país, as filósofas, assim como as teorias feministas, têm sido incluídas nas bibliografias dos cursos, desde o Ensino Médio até os cursos de pós-graduação. É o que a professora Dra. Joana Tolentino faz no Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Joana, junto a outras professoras e professores, conseguiu garantir a presença de obras de mulheres filósofas que foram excluídas do cânone filosófico nas bibliografias dos três anos de Ensino Médio. O mesmo deve acontecer no curso de licenciatura em filosofia, cuja primeira turma se inicia neste ano de 2020. “Tivemos a preocupação de fazer constar na bibliografia básica das ementas das disciplinas pelo menos a obra de uma filósofa. Acredito na potência dessas inclusões no ensino da filosofia, tanto na educação básica, quanto na formação de professoras/es, a fim de superar os apagamentos e seus efeitos epistemicidas, alterando o panorama da filosofia e de seu ensino”, comenta Tolentino.

A muitos quilômetros dali, a professora Maria Cristina Longo realiza o mesmo esforço de Tolentino de incluir obras de filósofas invisibilizadas no programa de pós-graduação da UFRN, em Natal. Os estudos da professora, em Economia e Filosofia, se voltam para a compreensão de questões éticas, políticas, de justiça social e felicidade humana. Ao tentar entender as causas da opressão dos seres humanos, foi inevitável que Longo se dedicasse à compreensão do machismo e do sexismo. Desde 2018, então, ela realiza o trabalho de incluir mulheres filósofas em sua bibliografia, principalmente aquelas que desenvolveram teorias feministas. 

Neste caminho, a professora acabou por trazer para dentro do departamento de Filosofia o trabalho de autoras que ainda seguem à margem da área: Angela Davis e Silvia Federeci. O resultado é que outras mulheres acabam trilhando o caminho que vai se abrindo. “Estou orientando uma aluna de mestrado que estuda a relação de Angela Davis com o feminismo liberal. Outras duas alunas de doutorado estudam John Stuart Mill e Marx respectivamente, mas pretendem incluir em seus trabalhos vertentes feministas ligadas a estas correntes de pensamento. No meu departamento as professoras Cinara Nahra e Monalisa Carrillo também estão fazendo isso”, diz Maria Cristina se referindo ao exercício de ampliar o cânone e incluir mulheres nas bibliografias dos cursos.


O incômodo que transforma

Hoje Joana e Maria Cristina estudam e ensinam filósofas, mas enfrentaram um percurso de formação em que as mulheres filósofas estavam ausentes nas bibliografias e pesquisas, o que incomodava as professoras. Maria Cristina Longo conta que fez graduação em economia e filosofia, mestrado e doutorado em Filosofia e “em nenhum destes momentos da minha formação houve uma mulher na bibliografia. Lembro-me apenas de estudar mulheres como comentadoras de autores como o livro de Isabel Limongi sobre Hobbes, textos de Yara Frateschi sobre o mesmo tema ou textos de Marilena Chauí sobre Spinoza, mas mesmo como comentadoras a menção a mulheres foi muito pequena”, comenta. 

Com Tolentino não foi diferente. A professora conta que sua experiência de formação em Filosofia foi bastante tradicional, com um viés histórico forte, restrita ao cânone masculino e nortecentrado. “Para não dizer que não estudei nenhuma filósofa na minha graduação, conseguimos, com muito esforço, que um professor com mais diálogo com os estudantes oferecesse uma eletiva sobre Hannah Arendt. Mas lembro-me do seu desconforto, uma vez que não era especialista nessa filósofa e por isso lecionar sobre esse recorte o constrangia”, comenta. 

Do incômodo e das lacunas nas formações das professoras, contudo, nasceram as mudanças. Durante os estudos para a tese de doutorado sobre ensino de filosofia, Tolentino passou um período pesquisando na Universidade de Buenos Aires (UBA). Ali, percebeu que o Brasil tem um cânone filosófico ainda mais excludente do que de outros países latinoamericanos, como a Argentina, o que a mobilizou a fazer um projeto chamado “Dossiê filósofas”. “Terminei a tese com pouquíssimos referenciais de mulheres na minha bibliografia e percebi que essa era a maior lacuna na minha formação, depois de todo um ciclo de graduação, mestrado e doutorado concluídos. Dois meses depois elaborei o projeto "Dossiê filósofas" a fim de empreender uma pesquisa apaixonada, engajada e militante sobre as mulheres na filosofia, caminho que só me foi possível trilhar fora da academia, como autodidata”, compartilha.


Caminhos abertos

A realidade da geração de Ester já se mostra diferente da de Maria Cristina e Joana. Diferentemente das professoras, Ester teve acesso, ainda na graduação às obras de Simone de Beauvoir, Joan Scott, María Lugones, Chantal Mouffe, Audre Lorde, Judith Butler, bell hooks e Christine de Pizan. Sarah Bonfim, mestranda da Unicamp também faz parte da geração que tem usufruído desse caminho que se abre, pouco a pouco, por outras professoras mulheres que vieram antes. Sarah fez graduação na UFABC, onde teve contato com obras de pensadoras como Hannah Arendt, Elizabeth da Boêmia, Nancy Fraser, Seyla Benhabib e Susan Okin. 

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Sarah Bonfim, mestranda em Filosofia na Unicamp, no campus da Universidade de Notre Dame, onde realizou estágio de pesquisa nos últimos meses.

“Geralmente, quem nos apresentava as filósofas eram as professoras do curso. Em especial, lembro do meu primeiro contato com a Nancy Fraser, na disciplina de Ética e Justiça, curso obrigatório do Bacharelado em Ciências Humanas, com a professora Aléxia Bretas. Fiz também uma disciplina de Ética Contemporânea com a professora Nathalie Bressiani, cujas principais bibliografias eram de autoras mulheres. Outras professoras como Anastasia Itokazu, Suze Piza, Luciana Zaterka e Marília Pisani também incrementavam suas disciplinas com pensamentos não só de mulheres europeias, mas de outras nacionalidades e etnias”, comenta Sarah.

Contudo, sua pesquisa de mestrado tem como tema o pensamento de Mary Wolstonecraft e o estudo da filósofa no Brasil, de acordo com a experiência de Sarah, é quase inexistente - ela cita apenas alguns artigos e uma tradução de Ivânia Poucinho. O caminho acadêmico de Sarah nos mostra como a presença das mulheres nos corpos docentes e nas bibliografias de curso tem mudado nos últimos anos, mas ainda há obstáculos a serem superados. Ser autodidata ainda é uma possibilidade que muitas pesquisadoras de Filosofia encontram para estudarem filósofas. Ao ter o pensamento de Wolstonecraft como seu objeto de pesquisa, Sarah percebeu como seu trabalho ainda é solitário. A mestranda está sempre em busca de outras pesquisadoras que trabalhem a autora, aqui e fora do país.

“Comecei a procurar bibliografias online, que em sua maioria, eram em inglês. Entrei em contato com alguns especialistas estrangeiros que me ajudaram a entender como funcionava o pensamento da filósofa inglesa. É um pensamento riquíssimo, mas em virtude da bibliografia ser em língua estrangeira e, ainda não haver um grupo consolidado de estudo sobre ela, por vezes é um trabalho solitário”, comenta a pesquisadora que acabou de voltar de um estágio de pesquisa na Universidade de Notredame, onde trabalhou sob orientação de Eileen Hunt Botting, que tem alguns livros publicados sobre o estudo tanto de Mary Wollstonecraft quanto da filha da filósofa, Mary Shelley. 


Mulheres na bibliografia, mulheres nos espaços

A presença das obras de filósofas nas bibliografias e nas pesquisas não significa apenas uma maior visibilização destes trabalhos que ficam à margem do cânone. Eles acabam por influenciar a maior presença das mulheres na Filosofia, em si. A pesquisa publicada pela professora Carolina Araújo (UFRJ) em 2019 comprova que as mulheres são minorias na área e sua presença diminui pela metade nos estratos mais altos da carreira.

O sentimento das mulheres da área, indica Ester, aluna de graduação, é o de que precisa constantemente provar algo. O cenário é ainda mais perverso quando consideramos outros marcadores que atravessam a área no Brasil, como raça e classe. “Eu sou a filha mais velha de uma empregada doméstica e escolhi cursar filosofia e me tornar professora no Brasil. Acho que no mínimo preciso provar pra mim mesma que posso viver disso, ademais para todo o mundo.  É uma angústia constante de me perguntar se leio o bastante, se escrevo e me comunico bem, se meu trabalho é relevante. Isso é cansativo e nada saudável, mas comum, e algo que vejo acontecer com a maioria das mulheres no meio acadêmico, e nem tanto com homens”, desabafa.

Por outro lado, Ester reconhece que a presença de outras mulheres na área, como as professoras e colegas do projeto de extensão, fazem a jornada mais leve. “Felizmente eu tenho bons modelos nos quais me inspirar e com quem conversar. Elas me trazem de volta sempre que eu me pego duvidando de mim ou do meu trabalho. Acho que o melhor de ser mulher na filosofia hoje é poder compartilhar experiências, trabalhar com outras mulheres, pesquisar sobre filósofas e isso ser reconhecido”, afirma.  

De acordo com a experiência que vivem, Joana e Maria Cristina acreditam que o trabalho de incluirem filósofas nos cursos provoca um impacto simbólico: as meninas e mulheres começam a perceber que essa área também é delas. Segundo Joana, é uma experiência que pode ser entendida como atravessamento simbólico crucial para chacoalhar padrões de nossos processos de subjetivação. “Antes, a filosofia parecia restringir-se ao mundo dos homens, mas agora há a afirmação de corporalidades de mulheres sendo reconhecidas e estudadas por suas filosofias. Associado a isso vem a abertura de novos possíveis: "se há mulheres fazendo filosofia desde sempre em diferentes culturas e lugares do mundo, eu, que me identifico como mulher, também posso filosofar", compartilha. 


Maria Cristina Longo compartilha do mesmo sentimento. Segundo a sua experiência, as alunas dizem que se sentem com mais força para estudar filosofia. “Lembro-me de uma aluna que explicitamente disse: "se elas conseguiram ser ouvidas e publicar livros a respeito, penso que também conseguiremos”, diz a professora. Os alunos também são positivamente impactados nesse processo, conta. “Eles tomam parte na discussão do tema e passam a repensar as posturas sociais e suas próprias posturas a partir da leitura de mulheres filósofas que abordam o feminismo. Em rodas de conversa sobre filósofas feministas eles repensam suas posturas, de seus amigos e familiares sobre a questão do jugo das mulheres”, diz Maria Cristina.

Ainda que se sinta um tanto solitária na sua trajetória de pesquisa, Sarah Bonfim diz sentir-se no ombro de outras gigantes: “não só de grandes pensadoras, como Wollstonecraft, mas de professoras e outras colegas estudantes que vieram antes de mim e lutaram contra o preconceito e a misoginia, pavimentando o caminho”. Sarah compara seu trabalho e de outras colegas como um grande bordado. “Um grande trabalho coletivo, que envolve não apenas o trabalho prático de transpassar o tecido (cânone) com a linha (as filósofas), mas também é um trabalho afetivo, de reconhecimento de vozes apagadas e que precisam ser costuradas no grande tecido que é a filosofia. Em resumo, vejo que ser mulher na filosofia, que estuda outras mulheres, requer a paciência, a sensibilidade e o pensamento de bordadeira, cujo objetivo é o de apresentar um trabalho que não só adorne, mas também faça repensar e rever nosso lugar no mundo”.  

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